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Coragem, altivez e dignidade

Henrique Marques-Samyn escreve sobre três participantes do debate promovido pelo Observatório da Prostituição no IFCS-UFRJ.

“Quando conversei com ela pela primeira vez, não a reconheci. Ciente de tudo por que passara – seu papel na resistência das prostitutas à brutal operação policial no prédio onde trabalhavam, em Niterói; a perseguição e o sequestro que sofreu nas mãos de policiais desde que denunciou a violência na Alerj, além de todas as outras opressões que vêm sendo perpetradas por agentes do Estado que deveriam protegê-la – , como supor que pudesse ser ela, ali, com aquele jeito suave de falar?

No entanto, eu logo perceberia sua força. Quando ela, diante de todo o público que a recebeu com aplausos, começou a relatar novamente tudo o que enfrentara, o reconhecimento foi imediato. A voz ainda era suave, os gestos ainda eram tranquilos; mas cada palavra trazia a dor da experiência, a contundência da luta, a coragem de quem não aceita injustiças ou arbitrariedades. Ali não havia timidez, mas a serenidade de uma grande guerreira.

Isabel é o nome que busca protegê-la do Estado que ainda a persegue. Tradicionalmente, esse é um nome de santa: remete à rainha, notória pela caridade, mas também pelo modo como se ajustou à exemplaridade e à modéstia impostas às mulheres medievais. Contudo, a dicotomia patriarcal situa a militante Isabel em categoria oposta: não é santa, mas puta; ademais, tampouco é branca como a rainha de outrora, mas negra como tantas outras prostitutas que, ao seu lado, lutam por reconhecimento e direitos. E foi com a altivez de uma rainha negra que Isabel falou, erguendo-se em defesa de sua dignidade.

Ao seu lado, outras duas guerreiras, Indianara e Monique, compunham uma tríade cuja representatividade não pode ser questionada: três prostitutas – uma negra, uma trans e uma branca – unindo vozes e vontades em apoio a Jean Wyllys, também presente, autor do projeto de lei que visa a garantir direitos à categoria que representavam. Como mensurar a importância daquele encontro, viabilizado pelo Observatório da Prostituição, que permitiu que três prostitutas falassem por si, compartilhassem suas vivências e defendessem seus direitos no Salão Nobre de uma das mais antigas e importantes instituições do Brasil? Naqueles depoimentos, nada havia dos abstratos conceitos e da hermética retórica que permeiam discussões acadêmicas; havia, sim, a materialidade de trajetórias construídas nas ruas e nas sombras – os espaços em que prostitutas sempre foram confinadas, mas que agora já não podem contê-las.

Quem assistiu àquele encontro histórico sabe que Isabel, Indianara e Monique ali estavam acompanhadas por outra figura inesquecível e imprescindível: Gabriela Leite, cujas palavras abriram aquela memorável noite e ecoavam em cada uma das falas. Não conheci Gabriela pessoalmente, mas tive e tenho a honra de ouvir e conhecer essas três mulheres, herdeiras de sua luta contra o estigma e contra a marginalização a que sempre foram relegadas as prostitutas – uma luta que, atacando a ordem patriarcal ali onde ela se afirma com mais violência, encerra um inigualável potencial revolucionário.”

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