Sexualidade e Saúde

Uma hora no divã, anal incluído

Estou, há cerca de um ano, trabalhando em uma pesquisa acadêmica realizada conjuntamente pela Universidade de Essex e a UFRJ/ Museu Nacional, sobre as opiniões de trabalhadores e trabalhadoras sexuais do Norte e Sudeste brasileiros. Busquei e entrevistei muitos profissionais do sexo, entre homens e mulheres cis e trans. E então me dei conta, ou ouvir as falas, da importância de elaborar sobre uma ideia comum que circula dentro e fora da prostituição, a respeito do ofício das prostitutas: a de que as putas fazem às vezes de terapeutas durante os programas. Monique Prada já trouxe reflexões a esse respeito com as quais quero fazer coro.

Sem dúvida há diversos paralelos possíveis entre a atividade do terapeuta e da garota de programa, como a atuação na esfera da intimidade, a ferramenta da escuta e a medição mais ou menos variável do tempo, tendo o gozo, de diferentes formas, no horizonte desse cálculo. Na introdução à reedição do Psycohpathia Sexualis, de Krafft-Ebing, Terence Sellers pesquisadora e dominatrix norte americana, explica que o corpo da prostituta sempre foi considerado um campo de provas para a saúde sexual dos homens, válvula de escape das tensões acumuladas no casamento. E daí que os homens tendiam a procurar prostitutas para realizar os seus fetiches, práticas sexuais consideradas escandalosas e doentias e tudo aquilo que não teriam coragem de fazer com namoradas, esposas ou quaisquer das mulheres da sua classe social e do seu círculo pessoal de relações.

Assim também, por outro lado, há limites óbvios para a aproximação entre o trabalho do terapeuta e o da prostituta: a clínica é um rito social específico e, como reivindicam os “nativos” (isto é; os terapeutas, analistas, psicólogos e demais profissionais da saúde mental), não deve ser confundida com outras práticas que podem até mesmo ter efeitos terapêuticos, mas que claramente não são terapia, pois essa exige ferramentas teóricas e práticas bastante singulares. Concordamos então que prostitutas não são terapeutas, assim como taxistas não são terapeutas.

Mas o que me trouxe para o texto foi -vejam que interessante!- o contraponto entre a ideia corrente da prostituta como terapeuta e outra ideia, comum entre alguns clientes habituais de programas, da prostituição como um vício.

Em minha tese de doutorado há um capítulo inteiro dedicado à perspectiva dos clientes e a noção de adicção que aparece comumente quando eles falam sobre o consumo frequente de sexo pago. A noção de vício entre meus clientes entrevistados esteve muito ligada ao sentimento de culpa a respeito da objetificação do corpo feminino e das mulheres prostitutas, mas também, e principalmente, uma culpa pelo que eles referiam como uma espécie de autoengano que pautaria o encontro com garotas de programa, uma vez que as putas também não estariam interessadas na pessoa do cliente, senão no dinheiro do programa. Assim, esses clientes se entristeciam quando sentiam o sexo pago como uma prática relacional inócua, presos à dificuldade que tinham de encarar os fatos sem tantos pudores: sim, eles objetificavam as mulheres. E sim, as prostitutas os objetificavam de volta.

No encontro sexual que é o programa, essas duas perspectivas (da cura e da doença) se chocam e se confundem, então. E daí podemos facilmente imaginar que um cliente que vai encontrar uma prostituta, imbuído de tal espírito de remorso em relação aos pactos morais que ele mesmo quebra e faltando com a contenção da qual ele não consegue dar conta, passará parte do tempo do programa sentado na beirada cama, a barriga frouxa e pau molíssimo (tudo nele tão desmaiado), compondo uma cena de derrota com a boca que confessa o mal-estar diante da esposa, dos filhos, do trabalho. Desabafa. Depois voltará a abafar.

E se as estatísticas apontam que os homens cuidam menos da saúde mental que as mulheres, que fazem menos análise, menos terapia, que se abrem menos com os amigos a respeito dos seus sentimentos, que cometem mais suicídio… do meio desse redemoinho de caos e tristeza… desponta um holograma: a puta que acolhe e cura. Toda ela é abertura e hospitalidade. Ouvidos penetrados pelas palavras masculinas carentes, que precisam de um remedinho. Pelada, disponível, ela acalma, aconselha, dá atenção, ri e chora como parte do seu ofício (e isso é menos um teatro do que uma performance, pois o efeito terapêutico, neste caso, independe de a mulher estar realmente interessada naquelas histórias que escuta. Assim como o sexo prostituído, durante a sessão-programa, independe de a prostituta desejar aquele homem).

A ideia paradoxal da prostituta como terapeuta revela um ponto de inflexão moral no imaginário a respeito da figura da puta. E, curiosamente, quando se diz que as prostitutas são terapeutas se está dizendo mais ou menos a mesma coisa que quando falam que os programas são um tipo de vício, de droga ou de doença. Com efeito, há uma interdependência dos conceitos de doença e de cura, na nossa sociedade. E a noção de cura está muito mais próxima e depende muito mais da ideia de doença do que da ideia de saúde. Mas o objeto dessas tentativas de classificação é algo incurável: a própria sexualidade masculina, na apoteose da sua expressão via consumo.

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Abaixo segue uma das narrativas de programa que estão no meu “Atuar ou Não Como Prostituta- programa, etnografia, putativismo” (Ofícios Terrestres, 2023).

Eu estava no salão e havia um cliente acompanhado de uma garota, sentado no canto. Eles me chamaram. Começamos a conversar. O cliente me pareceu meio louco. A menina fazia o jogo dele. Piscava forçadamente para mim em diversos momentos e eu tinha medo de o cliente notar os sinais que ela fazia. Depois entendi que talvez ele notasse mesmo e que a própria gesticulação exagerada da garota podia fazer parte de uma encenação, acordada nas filigranas da interação entre ambos.

Íamos subir então, os três, para o programa. A primeira acompanhante do cliente informou que ele sempre subia com ela e mais outra garota, mas que desta vez a outra menina não estava na Casa e eles decidiram me levar. Ele a encarregava o tempo todo de me “informar como ele era”. “Fala pra ela como eu sou, gata!” “Ah, ele é assim Giovana: ele não gosta de fingimento. Às vezes a menina é muito forçada, ou fica enrolando… ele não gosta de nada disso. Ele gosta que a menina seja natural”.

Quando chegamos ao vestiário para registrar o programa, não havia quarto disponível para sexo a três. A suíte só desocuparia dali a 40 minutos. Voltamos para o salão e fomos informar ao cliente. Ele se aborreceu e disse que reclamaria na administração da Casa. A menina pediu licença e subiu outra vez para o vestiário. Voltou dizendo que a cabinária queria falar comigo. Fui ao vestiário ouvir o que a cabinária queria me dizer. Chegando lá ela disse que o cliente não queria ficar comigo, mas estava sem graça de falar. Aquilo tudo me pareceu estranho, afinal, eu não notara, no seu comportamento, qualquer sinal de embaraço ou evitação. Ele mesmo havia me chamado. Logo em seguida a menina chegou ao vestiário e, pelas minhas costas, fez algum sinal com as mãos para a cabinária e depois anunciou: “Esquece! Esquece tudo! Ele quer ela!”

A suíte não demorou 40 minutos para ser desocupada. Foi antes. Enquanto nos arrumávamos no vestiário, a menina “passava a ficha” do seu cliente antigo. Eu ouvia tudo meio descrente. Seu comportamento me soava cheio de afetação e, além do mais, ao que tudo indicava, ela parecia ter tentado me tirar do programa, pedindo à cabinária que fosse me dizer que o cliente não queria ficar comigo. Assim poderia tentar convencê-lo a fazer o programa sozinho com ela, num quarto menor.

Ela dizia que ele “saía do quarto do nada”. Que ele não conseguia gozar e se irritava e saía antes de o tempo do programa acabar, esbravejando e dizendo que ia reclamar na administração. Disse que não deveria me assustar com aquilo e que, apesar de tudo, ele era muito tranquilo. Que deveríamos ficar pedindo para ele voltar, quando ele saísse.

Chagamos ao quarto, eu meio assustada, e ele me disse: “já não gostei. Ta enrolando para tirar a roupa. Não gosto que a menina enrole! Tem que tirar logo a roupa”. Tentei explicar que eu não sabia como ele preferia, mas ele não me ouviu. Tirei logo a roupa.

A mulher dizia que tinha ciúmes dele comigo, no quarto, uma misancene para agradá-lo. Ele brincava de dizer que queria me ver pegando a outra garota. Ela continuava a gesticular para mim afetadamente, fazendo sinais sempre que ele desviava o olhar. Eu procurava ignorar.

Ela tinha levado para o quarto uma maletinha de atendimento com uma caixa de lencinhos umedecidos de bebê. Limpou o pênis do cliente com os lenços. Ele reclamou impaciente: “Ah é! To muito sujo!” Ela respondeu: “Claro que não né, amor. Você não é nem um pouco sujo”, e continuou limpando.

Enquanto transavam, ele disse alguma coisa sobre ter transado com uma mulher bem mais velha e que desde então não tinha gozado nunca mais, havia mais de dez anos. Completou dizendo que tudo isso tinha sido antes do acidente. E apenas isso: antes o acidente. Mulher mais velha. Não gozar nunca mais.

Eu sentia que não deveria perguntar mais sobre as conexões desses elementos pra entender melhor a sua história, em vez disso, apenas dispunha das informações que ele oferecia espontaneamente. A menina continuava a me fazer sinais que eu notava com a visão periférica, sem olhar pra ela.

Era um daqueles programas de muita tensão. Eu esperava que a qualquer momento o homem desse um pulo da cama e saísse do quarto reclamando. Até que ele começou a se masturbar. A garota ia fazer isso para ele e eu sugeri: “deixa que ele faz”. Um daqueles momento do sexo em que sacamos bem a outra pessoa e podemos assim concorrer para aumentar o seu prazer. Algumas vezes, pode ser apenas o caso de não atrapalhar. De fato, eu nunca tinha visto uma performance tão artificial como a daquela mulher. Era curioso que a sua propaganda fosse de que ela “agia naturalmente”. Às vezes o programa (e também a propaganda, talvez mais ainda então as propagandas de programas) apresenta algumas… inversões de sentido interessantes.

Em paz, o cliente finalmente gozou. Ficou um tempo imóvel na cama e disse por fim: “Vocês conseguiram o que nenhuma menina nunca conseguiu”. A garota pareceu aliviada.


Natania Lopes é putativista, doutora e mestre em ciências sociais com foco em antropologia, pela UERJ. Atualmente faz pesquisa de pós doutorado na UFF, no departamento de Letras, sobre escritas de si e os horizontes narrativos da etnografia. É autora de Cabaré (Urutau, 2023) e Atuar ou Não Como Prostituta – programa, etnografia, putativismo (Ofícios Terrestres, 2023).