Legislação

Nova Zelândia: tribunal confirma que trabalhadoras sexuais têm os mesmos direitos que qualquer um

Michelle Chen, para o In These Times, publicada em 4 de março.

No mês passado o Tribunal de Revisão de Direitos Humanos da Nova Zelândia tomou uma decisão lapidar sobre a violação dos direitos humanos de uma mulher em um bordel de Wellington conhecido como The Kensington Inn, dirigido por um certo Aaron Montgomery. Mas o caso não envolveu as típicas alegorias da imprensa sobre uma trabalhadora sendo “vendida para escravidão” ou abusada por um cliente sádico. Ao invés disso, a funcionária abriu um processo contra Montgomery e a empresa proprietária do Kensington, M&T Enterprises, acusando Montgomery de tê-la assediado.

Em fevereiro, o tribunal publicou uma decisão em favor da trabalhadora – confirmando, assim, que funcionárias de bordel têm o direito de não ser assediadas pelos gerentes da casa, assim como trabalhadoras de qualquer outra profissão.

Quando se trata de debates sobre trabalho sexual, algumas feministas frequentemente levantam o conceito de que se trata de “um emprego como qualquer outro”, como a jornalista e ex-trabalhadora sexual Melissa Gira Grant já explicou. Ainda assim, o intercâmbio de sexo por dinheiro continua, curiosamente, uma noção radical para muita gente em todo o mundo. Embora seja certamente verdade que o trabalho sexual é uma carreira de verdade – nascida, para muitas, tanto da necessidade como da ambição -, ele também vem carregado de ansiedade e de tabus ligados à guerra cultural.

Na Nova Zelândia, porém, a descriminalização da profissão, na última década, ajudou a fazer recuarem as leis moralistas da era vitoriana e trouxe ao primeiro plano os direitos humanos no setor do sexo. A decisão que o tribunal tomou no mês passado reafirma ainda mais a legitimidade do trabalho sexual como profissão e o protagonismo das trabalhadoras enquanto tais.

Em seu processo, a trabalhadora reclamou que Montgomery frequentemente fazia perguntas importunas durante o período do assédio, em 2010, tais como “indagar várias vezes se ela faria sexo anal com os clientes e se ela ‘engolia’ ao fazer sexo oral”, e “se ela estava totalmente depilada”.

Cumprindo o protocolo da empresa, ela havia fornecido informações sobre depilação e sobre quais serviços ela deveria prover para ser mantida no quadro de funcionárias, o que tornava as perguntas de Montgomery totalmente desnecessárias. Além disso, as informações eram destinadas a uso nas negociações com clientes, de modo a facilitar o negócio dela, e não a saciar a curiosidade do patrão.

Segundo a trabalhadora, Montgomery também fez comentários ofensivos sobre a aparência dela – tais como “você deveria parar de comer hambúrguer” – que afetavam negativamente a autoestima dela e tornavam miserável sua experiência no emprego. Em outras palavras, Montgomery estava supostamente agindo como se esperasse que as fronteiras entre o discurso civil e a privacidade num relacionamento trabalho/gerência não se aplicassem, de alguma maneira, a um bordel.

Além do comportamento impróprio, disse a autora do processo, Montgomery tentava restringir as comunicações entre as trabalhadoras, uma tática tradicionalmente usada por empregadores opressivos para manter as trabalhadoras divididas e, portanto, menos capazes de tomar medidas coletivas contra tratamento injusto.

Sendo uma trabalhadora experiente, a demandante conduzia as trabalhadoras mais novas ao Coletivo de Prostitutas da Nova Zelândia (NZPC), como um recurso para serviços de saúde reprodutiva grátis e “um lugar onde problemas podiam ser discutidos, entre eles o de clientes difíceis”. Mas Montgomery, de acordo com o relatório, “não estava contente com isso e, em várias ocasiões, gritou com a demandante e a instruiu a não falar com as outras trabalhadoras sobre o NZPC”. As tensões cresceram, à medida que ele supostamente começou a “criticá-la por se encontrar com as outras mulheres fora do trabalho”, reprimindo o direito dela à livre associação.

No fim das contas, o tribunal concluiu que Montgomery havia “usado linguagem de natureza sexual para submeter a demandante a um comportamento que, para a demandante, era tão importuno como ofensivo, e era repetido, ou era de uma natureza tão significativa, que teve um efeito prejudicial na demandante”. O tribunal determinou o pagamento de uma indenização de NZ$ 25 mil (quase R$ 50 mil) por danos emocionais. Montgomery, que negou as acusações, já não é gerente do bordel.

O poder da decisão está em sua banalidade objetiva: afinal, patrões que violam os direitos de trabalhadores, se metem em sua privacidade ou se comportam de outras maneiras impróprias estão fora dos limites. e ponto final, não importa se eles estão em uma sala de diretoria ou em um salão de massagem. Contudo, levando em conta o histórico de estigmatização do trabalho sexual, o fato de a lei ter funcionado é notável.

Até mesmo a linguagem clínica legal da sentença do tribunal é um contraste revigorante com as caracterizações sensacionalistas de trabalhadoras sexuais pela imprensa; a demandante não aparece nem como vítima atormentada, nem como vadia impenitente. Em vez disso, o processo e a decisão focalizam a demanda dela por igualdade e respeito no local do trabalho e sua resistência contra um patrão supostamente abusivo.

Catherine Healy, cofundadora do NZPC, que ajudou a trabalhadora a levar a demanda ao tribunal, disse ao In These Times que a decisão marca um grande avanço legal no país. A Nova Zelândia descriminalizou oficialmente o trabalho sexual em 2003, determinando o licenciamento para empresas de serviços sexuais e impondo padrões de saúde e segurança para o setor. Healy lembra que no tempo da criminalização, gerentes como Montgomery seriam punidos por operar um bordel, e não por violar os direitos de suas funcionárias:

“É claro, você não quer que seu gerente seja mandado para a prisão por cinco anos [por conduzir o negócio], porque você queria ser uma trabalhadora sexual… e você só queria que se lidasse com a questão do assédio sexual. Agora, com o trabalho sexual descriminalizado, você pode focalizar no comportamento de exploração que você quer ver corrigido, e não temos a preocupação de que a natureza da atividade seja ilegal.”

Mais de dez anos depois, a decisão do tribunal é um novo marco para as trabalhadoras sexuais, por mostrar que elas podem usar o sistema legal para defender-se, em base de igualdade com os outros cidadãos.

“As autoridades agora podem entender que não é a natureza do trabalho, absolutamente, que é incômoda”, diz Healy. Ao invés disso, “são os comportamentos em torno dele, em termos de lei trabalhista, em termos de ter um contrato justo, de ter direitos a ser respeitados e acesso à justiça… Para nós , é uma decisão muito histórica.”

Os defensores há muito tempo argumentam que os maus-tratos a trabalhadoras sexuais são um subproduto do estigma e da criminalização endêmica, que expõem as trabalhadoras à discriminação, à violência, à pobreza estrutural e à ameaça maior de abusos sexuais e doenças sexualmente transmissíveis. Embora muitas trabalhadoras sexuais enfrentem dificuldades econômicas ou sociais, ativistas dizem que o problema moral subjacente ao negócio não está na profissão, e sim na sociedade que a condena sistematicamente.

A descriminalização aliviou alguns desses problemas na Nova Zelândia. Pesquisas indicam que desde que a Lei de Reforma da Prostituição foi aprovada, mais trabalhadoras sexuais dizem que são capazes de trabalhar para si mesmas, ao invés de vincular-se, por exemplo, a uma casa de massagem clandestina. Além disso, muitas relatam que se sentem mais livres para negociar com clientes sobre os serviços a serem prestados e práticas sexuais seguras, assim como têm relações melhores com a polícia.

Esse progresso reflete a evolução do ativismo das trabalhadoras sexuais como um movimento pelos direitos humanos e pela saúde pública, que emergiu décadas atrás como uma vertente do feminismo radical e em reação ao surgimento da crise do HIV/Aids. Mas ainda há lacunas na lei, diz Healy – particularmente para as trabalhadoras sexuais que trabalham nas ruas, e que ainda enfrentam discriminação legal e social por praticarem seu negócio em público. Em anos recentes, alguns ativistas contrários ao trabalho sexual na Nova Zelândia têm pressionado por zoneamento e por restrições comerciais à venda de sexo em público.

Além disso, o pêndulo pode estar balançando ainda mais para trás em escala global. com o recente avanço de legislação contra trabalhadoras sexuais ganhando impulso em países supostamente liberais, como o Reino Unido e a França. Também avançam campanhas mundiais em favor do chamado “modelo sueco”, que tem o objetivo de “reduzir a demanda” por meio da punição direta aos clientes e às empresas (e indireta às trabalhadoras).

“Acho que estamos novamente em uma encruzilhada”, diz Healy. “É simplesmente inacreditável que esteja ganhando tração o movimento pela criminalização do cliente e de terceiros.”

Na Nova Zelândia, pelo menos, a decisão do tribunal está mantendo sob controle a reação contrária dos ativistas reacionários da cruzada moral. No Kensington Inn, as trabalhadoras sexuais agora sabem que podem fazer seu trabalho em paz e erguer-se em defesa do direito de fazer seu trabalho – assim como todo mundo.