Cultura

Dica de leitura: O ano em que trafiquei mulheres

Por Monique Prada

Não dá pra fugir do assunto “tráfico” (muito embora o mais conveniente seja simplesmente grudar na parede um cartazinho dizendo “apoiamos o enfrentamento ao tráfico humano”, outro com “somos contra a exploração sexual de menores” e assunto encerrado).

Não dá pra fugir do assunto “tráfico humano” quando se quer tratar de modo sério e responsável a questão do trabalho sexual.

Não dá pra ignorar o que dizem as leis sobre nosso consentimento ser irrelevante quando se trata de viajar para trabalhar em outra cidade-estado-país – e de que modo isso afeta o nosso trabalho e mesmo as estatísticas sobre tráfico humano para exploração sexual. É assunto pesado que estou estudando. Até a Copa eu realmente não tinha me dado conta de que TODO DESLOCAMENTO que envolva trabalho sexual é considerado tráfico.

Durante a Copa, eu estive trabalhando entre Porto Alegre e São Paulo. Na prática, se alguém tivesse me ajudado comprando passagens, me oferecendo hospedagem ou o que seja, estaria me traficando. Pasmem. Nós não podemos nos deslocar para trabalho mesmo dentro do país. De posse desse conhecimento, não é mais possível ignorar o assunto.

Durante este período eu li, dentre outros, O ano em que trafiquei mulheres, de Antonio Salas.

Antonio é um jornalista que se disfarça e se mete em redes criminosas, a partir dali escrevendo seus livros. Antonio é um abolicionista, e um cínico com toques de machismo internalizados. Claramente lamenta pelas mulheres que se deixam “profanar” (eu não lembro se é este o termo, mas é este o sentido). É religioso, e a sexualidade feminina é algo que não compreende bem. É um cínico por que, mesmo tendo pago seus honorários (valores sabidamente baixos, dado o tipo de profissional escolhida), esteve ali tomando depoimentos para (sim!) publicá-los em livro e lucrar muito em cima de prostitutas, como fazem as pessoas que ele tanto critica (procurando o link pra postar aqui, constato que a edição em língua portuguesa está esgotada – escrever sobre putas rende horrores, em especial se você não for uma delas ou optar por histórias fantasiosas e cheias de glamour). Feitas essas ressalvas, recomendo a leitura.

Ao final, Antonio tenta salvar uma das “vítimas” de tráfico, no que é rejeitado. Apesar de a moça viver em situação precária na Espanha, ela é bastante clara: a situação em seu país de origem é tão absurdamente pior que a simples possibilidade de voltar a viver lá a assombra terrivelmente. Antonio a partir dali precisa reconhecer essa realidade e conviver com ela.

Existe algo com que nós, em muitos sentidos privilegiados, precisamos aprender a conviver: a vida das pessoas, possivelmente da maioria das pessoas, ao invés de dádiva é fardo. Tudo o que podemos fazer é, a nosso modo e com nossas claras limitações, tentar tornar esse fardo mais leve de carregar durante o curto período em que passamos por aqui.

A não regulamentação do trabalho sexual ao redor do mundo, a manutenção do Protocolo de Palermo nos termos em que o temos hoje (desconsiderando completamente o trabalho sexual consensual e confundindo prostituição voluntária com tráfico de pessoas) e a invisibilidade e a opressão sobre essas trabalhadoras torna sua passagem pelo mundo um fardo ainda mais pesado.

2 comentários sobre “Dica de leitura: O ano em que trafiquei mulheres

  • Boa análise. Eu me encantei com esse livro quando li (em 2006) mas hoje, revisando ele, dá para perceber que os traços moralistas do autor estragam tudo, inclusive a sua pesquisa. O avanço da informação no que diz respeito às meninas nigerianas – que são traficadas não apenas pela sua pobreza, como o livro sugere, mas por questões religiosas e porque vivem uma rotina de agressões e tortura nos seus países natais – torna várias passagens do livro obsoletas, até.

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