Direitos

Carta aberta a Cristina Fernández de Kirchner no marco do Dia Internacional da Mulher

A Associação de Mulheres Meretrizes da Argentina (Ammar) enviou nesta sexta-feira uma carta aberta à presidente Cristina Kirchner.

À sra. presidente da nação

Cara Cristina Fernández de Kirchner

‘Chegou a hora da mulher que compartilha uma causa pública,
e morreu a hora da mulher como valor inerte e numérico da sociedade’

María Eva Duarte de Perón.

Da nossa maior consideração:

Nos dirigimos à senhora afetuosamente, com o objetivo de solicitar uma entrevista pessoal com integrantes de nossa organização, a Associação de Mulheres Meretrizes da Argentina, Sindicato de Trabalhadoras Sexuais (AMMAR-CTA). O motivo de nosso pedido são os direitos postergados das mulheres trabalhadoras sexuais, a confusão constante gerada entre nossa atividade e o delito de tráfico de pessoas e a contínua estigmatização e discriminação de que somos alvo por causa de nossa escolha profissional.

Nós somos mulheres, maiores de 18 anos, que escolhemos por vontade própria exercer o trabalho sexual. Muitas somos mães e chefes de família, muitas militantes sociais, políticas ou simplesmente trabalhadoras. Ganhamos a vida dignamente, paradas na esquina, num apartamento privado, dançando em cabarés ou servindo bebidas, para levar o sustento para nossas casas, para nossos filhos. Temos realidades diferentes, mas uma identidade profissional comum, real e concreta: todas somos mulheres trabalhadoras sexuais autônomas.

Desde o ano de 1995, um grupo de companheiras, em geral trabalhadoras que atuam nas ruas, começaram a se organizar para fazer frente aos vários abusos (atropelos, injustiças, desmandos) que sofriam e formaram a Associação de Mulheres Meretrizes da Argentina. Desde então, e até hoje, integramos ativamente a Central de Trabalhadores da Argentina (CTA), conduzida pelo companheiro Hugo Yasky. Desde o primeiro momento, tanto ele como muitos outros companheiros e companheiras representantes de diferentes sindicatos da central nos abriram as portas, colaboraram com nossa formação sindical e acompanham a luta pelo reconhecimento de nosso trabalho.

Também em nível regional, fazemos parte da Rede de Trabalhadoras Sexuais da América Latina e do Caribe (RedTraSex) e, ademais, estamos amparadas nas resoluções da OIT, que no ano de 1998 recomendou a inclusão da indústria do sexo nas contabilidades oficiais dos governos e o reconhecimento do trabalho sexual como uma profissão, e recentemente nas da ONU, que ratificou o Pacto de San José da Costa Rica, que promove a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher e o Direito – de livre escolha – ao Trabalho, entre outros organismos internacionais que incluíram, sustentam e demandam de seus países membros que reconheçam o trabalho sexual como profissão, como forma de garantir a igualdade de direitos, colaborar com a luta contra a violência de gênero e o tráfico de pessoas.

O ano de 2005 foi um grande marco e nossa esperança ganhou forças, pois obtivemos a personalidade jurídica como associação civil. O então presidente, o caro Néstor Kirchner, seguiu aquela frase de Evita, “Onde há uma necessidade, há um direito”, e com o decreto 1086/2005, começou um caminho de reconhecimento das minorias e, dentro delas, pela primeira vez na história do país, mas não de suas proezas, um presidente da nação falava de nós, não em termos discriminatórios, mas em termos inclusivos, outorgando-nos direitos à saúde e à seguridade social.

Embora isso tenha sido um grande avanço, continua sendo uma das últimas dívidas desta década de ampliação de direitos. Talvez uma das razões seja a hipocrisia e a moral dupla, dado o desconhecimento de nossa verdadeira realidade e problemática. Além dos interesses de alguns funcionários do poder político judicial e mais do policial, já que trabalhar na clandestinidade favorece o pagamento de propinas e a violência institucional.

Como somos conscientes de que as transformações ocorrem através da política e das leis, em 2013 apresentamos, conjuntamente com o senador Osvaldo López (MC), uma Lei do Trabalho Sexual Autônomo, para que se reconheça nosso trabalho em nível nacional, que até hoje continua engavetada no Senado. Em 2014, apresentamos quatro projetos de leis provinciais com o mesmo objetivo e atendendo a particularidades locais: em Mendoza, conjuntamente com a deputada Lorena Saponara (PJ-FPV), em Neuquén, com o Movimiento Evita (FPV), na Capital Federal, junto à legisladora María Rachid (FPV) e, por último, em Santiago del Estero.

Em meados deste ano redobraremos a aposta e apresentaremos na Câmara, junto ao deputado nacional Gastón Harispe (FPV), um novo projeto de lei em nível nacional que se adapte aos tempos atuais, que contará, ademais, com a assinatura de deputados e deputadas de diferentes blocos, somadas às de representantes de organizações da sociedade civil e de personalidades.

Neste 2015, a AMMAR-CTA faz 20 anos. Estamos cansadas da violência institucional, midiática, de gênero; e ao mesmo tempo, estamos convencidas de que nosso trabalho tem que sair da clandestinidade, da marginalidade, da estigmatização, e por isso não vamos desistir. Não queremos mais ser vítimas da violência institucional, nem servir de caixa da polícia. Não queremos mais ser excluídas desta sociedade que – da mesma forma que com a senhora, companheira – nos marca, nos julga, nos critica, nos estigmatiza por sermos mulheres e sermos parte de uma classe trabalhadora.

Não queremos ser outra Sandra Cabrera. Esta última é nossa companheira, trabalhadora sexual autônoma, militante popular e referência de AMMAR Rosario, vítima de violência institucional por parte da Polícia Federal, quando denunciou a máfia existente nas forças policiais, relacionada com o tráfico e a exploração de pessoas, particularmente de menores, somada ao narcotráfico vinculado a eles e em conivência com os três Poderes na Provincia de Santa Fé. Nós somos contra o tráfico e a exploração de pessoas, este caso é uma prova disso, e consideramos que somos parte da solução.

Sandra hoje é um ícone na luta contra o tráfico de pessoas em Santa Fé, mas nós não queremos mais ícones, não queremos mais vítimas; queremos os mesmos direitos que tem qualquer trabalhador pertencente à classe operária. Queremos formalizar nossas contribuições e que estas sejam feitas para o Estado, não para o caixa da polícia, e que esse dinheiro retorne na forma de políticas públicas de inclusão para todos e todas.

Estas são as razões que nos animam a pedir-lhe que nos receba e escute, como sempre tem feito com todos e cada um dos argentinos e argentinas, especialmente os trabalhadores.

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Finalmente, esperando ter uma resposta rápida e favorável, a saudamos muito cordialmente e fazemos nossas as palavras de Evita que hoje nos representam tanto:

“(…) Chegou a hora da mulher que pensa, julga, rejeita ou aceita, e morreu a hora da mulher que assiste, amarrada e impotente, à caprichosa elaboração política dos destinos de seu país, que é, definitivamente, o destino de seu lar.

Chegou a hora da mulher argentina, integralmente mulher no gozo paralelo de deveres e direitos comuns a todo ser humano que trabalha, e morreu a hora da mulher companheira ocasional e colaboradora íntima.

Chegou, em síntese, a hora da mulher argentina redimida da tutelagem social, e morreu a hora da mulher relegada à mais precária tangência com o verdadeiro mundo dinâmico da vida moderna.” M. Eva Duarte.

Saudações afetuosas e um forte abraço feminista.

Associação de Mulheres Meretrizes da Argentina – Sindicato de Trabalhadoras Sexuais.

AMMAR-CTA


Tradução de Lilian Carmona.