“A gente tem direitos como qualquer trabalhador”
Entrevista destruidora com a trabalhadora sexual que atualmente encabeça as denúncias contra a invasão policial no prédio da Caixa, em Niterói, no dia 23 de maio de 2014, local que abrigava mais de 90 apartamentos de prostituição. A ativista vem sendo desde então ferrenhamente perseguida pela polícia do Rio de Janeiro, tendo sido já presa e estuprada por essa mesma polícia que deveria protegê-la, mas que na prática só serve para extorqui-la e violentá-la. Teve sua residência invadida várias vezes por gente contratada por eles, atualmente proibida de pisar no Rio, em trânsito pelo Brasil afora por tempo indeterminado, os filhos ficando ora com amigos, ora com familiares.
Eis uma transcrição da entrevista:
Amara Moira: Olá, meu nome é Amara Moira, eu sou a moderadora da página “E Se Eu Fosse Puta – Amara da Depressão” e estou aqui hoje para entrevistar uma ativista que é babado. Ela simplesmente é a prostituta que lidera as denúncias da invasão policial no prédio da Caixa, em Niterói, dia 23 de maio deste ano [2014] – por motivos de segurança, vamos entrevistá-la e identificá-la aqui como Isabel. Ela trabalha na Daspu, a grife, na ONG Davida, representa o Brasil na Plataforma Latino-americana de Trabalhadores Sexuais e está na luta pela regulamentação da prostituição como profissão. Então, uau, que credenciais! Bom, Isabel (ela não vai poder ser também mostrada no vídeo, só as mãos, belíssimas mãos), vamos lá, você poderia falar um pouco mais pra gente sobre a importância do PL Gabriela Leite na vida das prostitutas, pra profissão em si?
Isabel: Eu acho que hoje, depois do que aconteceu comigo no dia 23 de maio, o PL tem uma grande importância. Porque o Estado, de uma forma geral, eles acham que têm poder de entrar numa casa de prostituição, estuprar, violentar, levar mulheres presas, prostitutas presas, os donos do estabelecimento presos e esse PL vai ser totalmente fundamental – uma vez que eu tenho meu local de prostituição e trabalho com uma amiga, eu sei que a polícia não vai poder entrar no meu local de trabalho e falar que eu tô explorando a minha amiga e a minha amiga me explorando. A gente tá ali unida, trabalhando juntas, muitas das vezes várias das prostitutas não têm condições de pagar um aluguel caríssimo, porque pra você alugar um local seguro pra trabalhar e atender clientes não é qualquer lugar que aceita, e quando a gente procura um lugar pra poder trabalhar e atender clientes, esse lugar é caro (no Rio, por exemplo, é entre R$ 5 mil e R$ 8 mil – não é qualquer prostituta que tem esse valor pra alugar). Então, o PL vai dar garantia de a gente poder trabalhar, de ter um local seguro, de as mulheres, também, que não têm condição de alugar um lugar poder trabalhar pra outras pessoas, ter [o dono do estabelecimento] o direito de ter de 1% a 50% do valor do programa (e isso tem que ser acordado entre ambas as partes). Então acho que o PL vai nos empoderar bastante, vai diminuir bastante a violência contra prostitutas.
Amara Moira: E, pensando assim, nessa questão de coisas que poderiam atrapalhar a vida duma prostituta no exercício da sua profissão… Então, pela sua fala eu entendo que a polícia seja uma das grandes responsáveis pelos problemas que a gente vive, e não necessariamente cafetinas e cafetões. Como você vê isso? Como você vê a importância dessas figuras no exercício da sua profissão?
Isabel: Entre a polícia e o cafetão, a diferença? Eu acho que a polícia tem que ter um papel fundamental de estar nos defendendo, e não nos agredindo, porque hoje o maior violador de direitos de prostitutas é a polícia, o Estado, e não o cafetão, mas a pessoa que tem o poder de estar dando um lugar pra prostituta trabalhar, o dono do estabelecimento: vamos colocar, o empresário. Ele também tem que ter os direitos dele garantidos, porque a pessoa não tem o porquê de alugar um lugar e colocar várias prostitutas pra trabalhar, e ele vai lucrar o quê, nada? Então, tem que ter a lei pras duas partes, tanto pra quem é o empresário, quanto pra [nos proteger da] polícia. A gente, como prostitutas, tem que ter segurança da polícia, quem tem que nos proteger, e hoje a polícia não nos protege – só entra pra bater, estuprar, roubar e prender –, e o dono do estabelecimento também tem que ter a segurança dele, de que ele vai estar ali com o local dele, de trabalho, também porque aquilo ali não deixa de ser um lugar de trabalho, em que a gente precisa de segurança. Porque hoje em dia em qualquer lugar, aberto ou fechado, que a gente como prostituta tenha um segurança, eles querem enquadrar como milicianos, e não é milícia o que atua nesses lugares: uma cabeleireira que tenha um salão de cabeleireiro tem direito de ter um segurança, o dono da farmácia tem direito de ter um segurança, o advogado tem direito de ter um segurança, por que que a prostituta não pode ter um segurança? Porque quem faz a nossa segurança é dado como miliciano, e isso é totalmente errado, a gente tem direitos como qualquer trabalhador.
Amara Moira: E, por exemplo, existem casos de extorsão da polícia nessas casas que tentam abrigar prostitutas?
Isabel: Totalmente. Todos os lugares onde trabalhei no Brasil têm casos de suborno, de arrego policial, mas o pior estado, eu acho, de casos de suborno é o Rio de Janeiro. Onde eu trabalhava, o prédio em que eu trabalhava, tinha quase 90 apartamentos de prostituição e a gente pagava por mês R$ 132 mil pra trabalhar. Pra mim, é o pior lugar que tem. Assim, em todos os lugares tem arrego, a polícia, em tudo quanto é lugar eles querem pedir dinheiro pra gente trabalhar na rua, eles querem pedir dinheiro pra gente trabalhar no apartamento, pra gente atender em motel, eles querem mandar no nosso próprio corpo. Ou a gente paga com dinheiro, ou a gente paga com sexo, a gente tem que pagar de alguma forma, ou comprando drogas na mão da polícia, de alguma forma a gente tem que pagar.
Amara Moira: Isso me faz pensar também num ponto que é interessante, que é quando feministas tentam colocar que o cliente, o cliente que a gente vai atender, é a figura que vai nos explorar, que vai nos objetificar, que vai abusar do nosso corpo, que vai nos estuprar, nos violar, fazer coisas contra a nossa vontade. Mas na prática não tenho certeza se é esse cliente o responsável por fazer todas essas coisas. Como é a sua relação com o cliente?
Isabel: O cliente pra mim é a figura principal do meu trabalho, é quem garante o meu sustento, é quem garante o meu dinheiro. Eu não vejo o cliente como o meu violador em momento nenhum. Em todos os momentos que eu tive de necessidade, de aperto, em relação a homens que eu estava atendendo, eu não identifico eles como clientes, identifico como psicopata, como ladrão. Eram homens que queriam me roubar, como também já tentaram me assaltar várias vezes na rua – eu também corro o risco de ser assaltada na minha profissão. Eu nunca tive problema de violência com cliente, nunca tive problema de ser estuprada com cliente. Os únicos problemas que tive com quem se identificava como cliente, mas que na realidade não são clientes, foram com homens que queriam roubar, matar, como em qualquer profissão tem, qualquer lugar tem. Tem ladrão na rua, tem ladrão no shopping, tem ladrão em qualquer lugar do mundo. E eu como prostituta também, tem ladrão querendo me assaltar porque eu tenho dinheiro. O cliente é a figura principal do nosso trabalho, tem que ter, cada dia tem que ter mais e mais clientes.
Amara Moira: Interessante essa perspectiva, que tenta fazer com que o cliente não seja mais demonizado, porque isso atrapalha a nossa profissão. Uma outra coisa que fico pensando e que gostaria muito que você pudesse falar a respeito é, já que você rodou o Brasil, trabalhou em vários espaços, será que você poderia fazer um paralelo entre, por exemplo, a Vila Mimosa no Rio, o Jardim Itatinga em Campinas e a Afonso Pena em Belo Horizonte? Como se dá a prostituição nesses espaços?
Isabel: A Vila Mimosa no Rio, eu fui trabalhar na Vila Mimosa… eu tinha dezoito anos e já trabalhei várias vezes lá. A Vila Mimosa é um local totalmente perigoso, muito perigoso, em que as prostitutas lá não têm voz – existe uma associação dentro da Vila Mimosa que se diz uma associação a favor das prostitutas, mas não é uma associação a nosso favor, é uma associação totalmente contra, que beneficia somente os donos dos lugares na Vila Mimosa. A Vila Mimosa é um local, pra trabalhar, que a gente pode considerar mais independente, sim, porque a gente entra e sai a hora que quer, porém tem um perigo muito grande: lá muitas prostitutas morrem e ficam lá dentro. Eu acho que a Vila Mimosa tinha que ser um local mais visto pelas organizações que trabalham com prostitutas. A Afonso Pena eu gostei muito, mas tem mulheres cis e trans, e o lado esquerdo é de trans e o direito é de cis. E o que me impressionou muito na Afonso Pena é como que eles querem classificar as prostitutas: primeiro ponto da Afonso Pena é menor de idade, segundo ponto é mulheres gordinhas, terceiro ponto é mulheres mais ou menos e no topo da Afonso Pena são mulheres bonitas, e isso eu acho totalmente preconceituoso. E acho totalmente errado ter que dividir uma rua com menor de idade, eu acho um absurdo e não aceito. Fora isso, os clientes lá são muito bons, gosto muito dos clientes de Minas, sempre gostei. E o Jardim Itatinga pra mim é muito bom, pra mim o melhor dos três é o Jardim Itatinga, que a gente tem a independência de trabalhar a hora que quer, não considero um local que explora a gente, a gente paga pelo que faz, e a gente é totalmente livre, um lugar em que circulam muitos homens, tem um baixo índice de violações feitas pela polícia. E em Belo Horizonte também não tem um alto índice. Desses três lugares, o índice onde mais é violado mesmo, onde mais somos violadas, é no Rio – na Vila Mimosa, a polícia também atua muito brutalmente lá dentro. E o Jardim Itatinga também eu acho perfeito, pra mim o melhor dos três. Fora que, em Belo Horizonte, sobe e desce pra mim também, fora que é a Afonso Pena, mas o sobe e desce é perfeito também.
Amara Moira: Que sobe e desce?
Isabel: Dos hotéis. São duas ruas com 22 hotéis e lá circulam cerca de 5 mil homens por dia, o programa a partir de R$ 10 e a gente faz, assim, 50, 60 programas por dia. Então também acho o máximo lá, gosto muito.
Amara Moira: Não resseca, não destrói o corpo?
Isabel: Não, pior que não, menina. Lá é bom que ainda corre o risco de gozar várias vezes por dia. Eu gosto de lá, muito bom.
Amara Moira: Você tocou no tema da prostituição infantil e, bom, o Projeto de Lei Gabriela Leite deixa de se referir a isso como prostituição infantil, ele fala sobre exploração sexual de menores de idade, porque isso não é prostituição. Na prostituição em si, como esse projeto prevê, a pessoa tem que ter pelo menos dezoito anos. Como você vê a situação do Brasil na questão da exploração sexual de menores de idade?
Isabel: Aqui no Brasil, a exploração sexual infantil é um fato, acontece. Eu, ao contrário de muitas prostitutas, não escondo essa realidade, e quero poder trabalhar em cima disso também. É uma coisa que acontece de verdade. Não existe falar que BH não tem menor de idade, São Paulo não tem, Rio não tem, tudo quanto é lugar tem menor de idade. Elas se infiltram no nosso meio, porque eu já trabalhei com várias menores de idade com identidade falsa. Sendo que eu acho que essa política da exploração sexual infantil tem que ser melhor trabalhada pelo governo, pelo Estado, pelo município: não adianta ter políticas para acabar com a exploração sexual infantil, se o governo não tem uma medida socioeducativa totalmente abrangente pra poder acolher essas menores. Então, acho que o Estado tem que saber trabalhar em cima dessas menores. E tem alguns estados aqui que são, assim, uma realidade muito assustadora… eu fui em Fortaleza e fiquei muito chocada com a realidade de Fortaleza, e no Nordeste tá alavancando muito – a cada dia que passa aumenta mais ainda isso. E isso é uma coisa que o Brasil tem que tomar cuidado mesmo, que é uma realidade mesmo, não é mentira. A gente não pode esconder o que acontece.
Amara Moira: Bom, eu fiz uma apresentação inicial a seu respeito, mas se você quiser completar, falar um pouco mais sobre quem é você, quaisquer detalhes que você julgue importantes, que você possa divulgar, dividir com a gente…
Isabel: Hoje, pelo fato do que aconteceu comigo dia 23 de maio, eu venho sofrendo muitas ameaças da parte da polícia do Rio de Janeiro, da parte de um grupo de extermínio do Rio de Janeiro. Hoje eu me encontro sem casa, sem poder ficar com meus filhos… fiquei sabendo na semana passada que a Vara da Família do Rio de Janeiro entrou pedindo a guarda dos meus filhos. E hoje eu tento lutar contra esse mesmo Estado que tinha que estar me defendendo e tirou meus direitos, tirou meus direitos de mãe, de cidadã, de mulher. E recentemente eu vim de Brasília, eu consegui uma entrevista com a ministra dos Direitos Humanos, Ideli Salvatti, e vim muito chocada de lá: ela me chamou assim e quis dizer ao pé do ouvido que puta tem que se prostituir em outro lugar, e cada uma toma conta do seu próprio rabo, da sua própria xereca – ela quis dizer isso, praticamente, que a Secretaria de Direitos Humanos federal não ia fazer nada pela minha luta, que hoje eu tenho um peso muito grande de organizações do mundo inteiro ao meu favor, só que o Brasil não ia se pronunciar em nada a favor das prostitutas no Brasil, que era pra eu poder desistir, que eu não ia conseguir nada. Isso a ministra dos Direitos Humanos me falou, só que ao mesmo tempo que ela me falou isso, eu fiquei muito chateada, mas eu voltei de lá mais encorajada de continuar nessa luta, mesmo sem casa, mesmo correndo tudo o que eu estou correndo, todos os riscos. Quando eu estive lá com ela, eu tinha acabado de receber quatro facadas, de uma invasão que tinham feito na minha casa, eu estava totalmente, assim, machucada, e ela não se sensibilizou em nada. Ela é uma ministra desumana, e isso me choca muito, como que o Brasil tá vendo a nossa luta, sabe?, que realmente eu vejo que, pelo governo aqui, a gente não tem vez, as prostitutas não têm lugar, nós não somos mulheres, não somos mães, não temos direitos de nada, é como se a gente fosse um bichinho lá no canto, que tivesse que ficar escondido. Que foi isso que eu senti lá em Brasília.
Amara Moira: E agora, com a Gabriela Leite tendo falecido, o movimento das prostitutas fica órfão duma liderança, ou ele continua forte, tem diversas pessoas fortes conseguindo tocar essa luta? Como ele está neste momento?
Isabel: A gente vai se empoderar. A cada dia que passa a gente está conseguindo alianças mais fortes, a Davida é uma ONG muito importante, foi uma ONG pra mim muito importante, na minha luta, em todos os momentos difíceis a Davida tá comigo, hoje graças a Deus eu faço parte da Davida, da Daspu. E a Gabriela se foi, mas deixou a gente aqui pra continuar essa luta. A luta não é só minha, é de todas nós. E a gente vai continuar, vamos tocar pra frente – entre barrancos e maravilhas, a gente vai continuar, não vai desistir, não.
Amara Moira: Vai ser perfeito. E a gente vai aprovar esse PL e vão vir outros PLs depois.
Isabel: Vão vir outros PLs também. O Jean Wyllys, também, tá ajudando bastante, o deputado que teve a coragem de levar o PL quando a Rede Brasileira de Prostitutas decidiu e optou por ele. E ele vai conseguir. E se ele não conseguir, a gente vai conseguir outros, mas ele vai conseguir. Hoje a Davida, a cada dia que passa, vai crescendo mais e mais e a gente vai tá trazendo com a gente várias prostitutas pra estar empoderando essa luta, porque isso é muito importante, que as prostitutas não tenham medo de lutar pelos seus direitos, que elas possam lutar pelos direitos, são nossos direitos.
Amara Moira: Bom, creio que é só, foi uma entrevista fabulosa, que vai pro ar logo mais, e você vai ficar ainda mais famosa, Isabel, e essa mensagem vai chegar lá na ministra e ela vai ouvir umas poucas e boas. Ela vai ouvir, com certeza. A ministra desumana. Vai pegar essa. Agradeço muitíssimo a sua participação, e é isso. Por aqui, Amara Moira se despede com esse vídeo, essa entrevista da Isabel. Tchau, querida.
Nota: a foto principal é de Giorgio Palmera, Fotografi Senza Frontiere.