Trabalhadoras do sexo como trabalhadoras: uma crítica à abordagem abolicionista do trabalho sexual no Líbano
Por Ali Reda, publicado no Kohl Journal. Tradução de Ricardo Gozzi.
Introdução
Um artigo publicado no ano passado por Imad Bazi reconta a história oculta das profissionais do sexo e seus cafetões em Beirute (2019). Ifaf foi uma das muitas cafetinas da Beirute pré-guerra civil. Mas antes de se tornar uma cafetina, ela era uma trabalhadora sexual famosa nos anos 1940, primeira década da legalização da indústria sob o mandato francês. Ela alcançou níveis extremos de notoriedade quando uma concorrente enciumada a atacou usando um agente ácido.
Foi quando ela percebeu que o trabalho nos becos escuros de Beirute não era seguro. Ifaf decidiu que estaria mais segura se conseguisse se casar com um oficial de segurança libanês que lhe desse um lar e proteção. A partir de seu status recém-conquistado, ela conseguiu colocar várias outras mulheres sob seus cuidados.
No fim das contas, Ifaf e seu marido, de acordo com o relato de Bazi, passaram a atrair mulheres que fugiam da casa dos pais, ludibriaram outras pessoas a se juntarem a ela e chegaram a abrigar, sem saber, o notório espião israelense Shulamith Cohen em seu bordel.
A história termina com a prisão de Ifaf durante uma operação antiprostituição no fim dos anos 1950. Bazi menciona inclusive que ela liderou uma rebelião contra as más condições de aprisionamento das mulheres na penitenciária de Baabda, tornando-se mais uma companheira entre entre as demais prisioneiras, em vez de cafetina delas.
A história de Ifaf, embora pelo menos em parte tomada de mitologia, revela como o Estado e os agentes estatais exercem influência sobre a legalização, a regulação e o enfraquecimento do modus operandi do trabalho sexual. A decisão de Ifaf de tornar-se uma profissional do sexo pode ter sido dela. Mas foram as faltas de medidas de segurança e de proteção que a deixaram à mercê de agentes de segurança corruptos. Ifaf também dependia integralmente de uma provisão de jovens desempregadas para sustentar seu patrimônio. O rápido aumento do desemprego em uma economia marcada por serviços financeiros baseados em empregos nepotistas, e que mais tarde precipitaria a guerra civil, sem dúvida ajudou Ifaf a convencer essas mulheres a se juntarem a ela (Nasr, 1978, p. 11). Trata-se de uma história reveladora de como o Estado, e também sua ausência, estruturam as condições do trabalho sexual no Líbano.
É nesse contexto que pretendo me insurgir contra o que chamo de abordagens “abolicionistas” ao trabalho sexual. A visão abolicionista aborda o trabalho sexual como uma expressão homogênea do desejo patriarcal que domina e explora a sexualidade da profissional do sexo. Para o abolicionista, a prática do negócio sexual provoca tremenda trepidação moral, reproduz noções patriarcais sobre a dignidade de quem vende sexo e leva à degradação do corpo de quem o faz. O trabalho sexual é considerado um trabalho que corrompe o corpo e a psique do cliente e do vendedor. Contra essa abordagem moralista, argumento que as formas mais predominantes de trabalho sexual no Líbano (dirigidas por um cafetão, muitas vezes sob a regulação indireta do Estado, da polícia e de seus aparatos) emergem do fracasso dos modos tradicionais de relações familiares e socioeconômicas.
De fato, os sistemas vigentes de relações familiares e trabalhistas não fornecem às pessoas um trabalho significativo, nem eventuais mecanismos de autorrealização. Ao estudar o trabalho sexual, não se pode entendê-lo como um processo que existe fora das realidades política, econômica e social nas quais ele se insere. Ou seja, em vez de ver o trabalho sexual como fonte de ideias patriarcais quando se trata de quem participa do setor, vejo o próprio setor como uma resposta às falhas do Estado libanês. Transformar o “trabalho sexual” em um dado fenômeno social que afeta a socialidade é redesenhar fundamentalmente como as pessoas transacionam o sexo e o corpo, para começar. Pois muitas vezes é a concepção patriarcal de que a sexualidade das mulheres é propriedade dos homens da família que sustenta a ideia de recuperá-las como trabalhadoras do sexo para si mesmos.
Para consolidar minha crítica, aponto para o relatório anual da Kafa sobre trabalho sexual em Beirute lançado em 2014, Explorando a demanda por prostituição, como um exemplo pertinente da representação abolicionista do trabalho sexual. Como este artigo aborda o trabalho sexual entre mulheres cis, levanto exemplos de manifestações paralelas do fenômeno. Por isso, trato do trabalho sexual em grande parte como uma transação de serviços sexuais entre uma mulher cis e um cliente – embora isso obviamente não represente toda a amplitude do trabalho sexual.
Meu principal argumento é o de que a visão abolicionista sobre o trabalho sexual carece de contextualização nas relações patriarcais e na precariedade das condições de trabalho no Líbano, ilustrando a questão apenas como um resultado do desejo do comprador masculino de pagar por sexo. Tal visão ofusca contingências sérias e importantes que frequentemente precipitam o trabalho sexual precário: o aumento da mercantilização das relações sociais e o fracasso dos entes estatais e familiares em prover todos os seus membros de maneira justa. Começo este ensaio revisando os debates feministas sobre o trabalho sexual, apontando como houve uma tendência a se fixar no valor do sexo como fenômeno social, em vez da dimensão do trabalho no trabalho sexual.
Ver o trabalho sexual como uma questão de trabalho permite uma melhor contextualização, que, uma vez explorada, aponta para a necessidade de fortalecer as condições de trabalho das trabalhadoras do sexo em vez de restringi-las, punindo os clientes. Realizo essa análise em três domínios relacionados ao trabalho sexual. O primeiro é a conexão entre trabalho sexual e tráfico sexual, que abolicionistas como a Kafa consideram como um fato consumado. Argumento aqui que, embora possa ser benéfico estudar os dois como parte do mesmo continuum, devemos permanecer cientes do que transforma “trabalho” em “escravidão”, em vez de desmembrar os dois. As segunda e terceira partes do ensaio analisam o relatório da Kafa de 2014 em duas seções: o diagnóstico do problema e a solução proposta. O diagnóstico ali traçado retrata a questão como um problema da demanda que cria as condições do trabalho sexual e, portanto, oferece a solução de criminalizar o cliente. Este “modelo nórdico”, conforme exponho, tem poucas chances de funcionar no Líbano.
Sexo ou trabalho?
Apesar dos extensos debates a respeito do trabalho sexual na bolsa de estudos feministas, o tópico permanece um dos menos documentados empiricamente, especialmente no que diz respeito a relatos que forneçam uma interpretação distintamente negativa ou de empoderamento do trabalho sexual e da atividade feminina (Rubin, 1993; Weitzer, 2009). Essa divisão estruturou o debate feminista por várias décadas, sem colocar em evidência os sujeitos da pesquisa. De fato, a discussão teve um papel importante em delinear os debates feministas sobre o problema sociológico da atividade e de sua estrutura, ao mesmo tempo em que se afastava da realidade das pessoas envolvidas na indústria. O desenrolar desse debate reduziu-se a discutir se as mulheres haviam escolhido “honestamente” o trabalho sexual e se o consentimento é possível em condições de pobreza absoluta.
Enxergar problema como uma questão de estrutura ou de atividade é um problema em si, no entanto. Tal formulação corre o risco de deixar de fora o motivo de se iniciar tais discussões: a segurança, a estabilidade e o bem-estar geral das profissionais do sexo. Uma saída para esse impasse de estrutura/atividade foi, mais recentemente, aberta por uma abordagem que busca reconceitualizar o trabalho sexual como, em última instância, uma forma de trabalho (Weitzer, 2007).
Antes de explorar essa conceitualização alternativa, vale a pena examinar como as feministas, tanto de oposição quanto (muitas) solidárias, concebem o trabalho sexual. Ambos os relatos baseiam-se em noções do sexo como degradante ou libertador. Trata-se de uma fonte de total empoderamento ou negação da imagem da profissional, do lugar da despersonalização e até mesmo da própria premissa da violência patriarcal.
Posturas feministas de oposição ao trabalho sexual destacam o grau em que o envolvimento das mulheres na indústria resume-se a um caso especial de controle patriarcal e capitalista do corpo e da sexualidade femininos (Jeffreys, 2003; Miriam, 2005). A “compra” pelos homens de acesso a mulheres para a relação sexual é um exemplo fundamental de como o capitalismo, de acordo com a crítica marxista, permite a exploração do excedente de trabalho do trabalhador. Como observa Marx, a força de trabalho – ou seja, a capacidade de trabalho das pessoas – torna-se estranha a elas; confronta-as como algo externo – uma mercadoria.
Para as feministas abolicionistas, o sexo constitui algo particularmente degradante a ser mercantilizado, semelhante ao corpo de uma pessoa que se torna estranho a si mesma. Evidentemente, elas omitem o fato de Marx ter escrito sobre o trabalho sexual como um exemplo da “prostituição geral do proletariado” – uma repetição de um processo geral que ocorre em diversas frentes, mercantilizando o corpo e a matéria e trazendo-os para as relações de mercado. A principal diferença entre marxistas e feministas abolicionistas é a aceitação implícita de outras formas de trabalho como mais dignas do que o trabalho sexual. Feministas (e conservadores) que rejeitam o trabalho sexual o rejeitam por considerá-lo particularmente degradante ao status da pessoa, e que sua condição nunca poderia ser passível de mudança. Tais pontos de vista são exemplificados pelo fato de que programas de saída são sugeridos pela maioria das feministas de oposição (Jeffres, 2008, p. 207).
Como reação a essas visões, algumas acadêmicas feministas que estudam o trabalho sexual o conceberam como subversivo e como uma forma de resistência à hegemonia masculina (Chapkis, 2013; Pheterson, 1989; Strossen, 2000). Elas destacaram os benefícios financeiros e psicológicos que as mulheres obtêm com a entrada no trabalho sexual. Segundo essa visão, a entrada das mulheres é vista de maneira positiva, não muito diferente da entrada em outros campos de trabalho. É uma espécie de “generosidade sexual” – um trabalho repleto de oferecimento de prazer e de exploração do cliente (Queen, 2001). O sexo é valorizado como algo que transcende a monotonia do trabalho assalariado geral. É, nessa formulação, uma exceção à condição geral de proletarização. Essas feministas normalizam o valor do trabalho, descartando as reformas necessárias exigidas pelas profissionais do sexo para protegê-las da particularidade de suas condições de trabalho.
Ambas as perspectivas sobre o trabalho sexual são limitadas, na medida em que são desenvolvidas a partir de considerações teóricas pensadas diretamente numa poltrona ou num auditório de palestras, a partir de escassas descrições empíricas da própria indústria do trabalho sexual e da vida das mulheres que dela fazem parte. Tal limitação naturalmente se inclina a uma abordagem filosófica que tende a silenciar a bagunçada realidade social.
Em segundo lugar, e como uma limitação relacionada, tais relatos têm pouca relevância para ativistas, profissionais do sexo e formuladores de políticas em geral. Eles oferecem respostas que seguem a linha de “abolir ou celebrar o trabalho sexual”, o que não aprofunda nossa compreensão dos fenômenos nem mostra como fazê-lo funcionar melhor para as trabalhadoras.
A partir do final dos anos 1990 e do início dos anos 2000, a abordagem do trabalho sexual redefiniu a questão como relacionada ao mercado de trabalho mediado por estruturas jurídicas (regulamentação da indústria pelo Estado) e condições sociais (dominação masculina, condições socioeconômicas) (Kempadoo & Doezema, 2018 ; Scoular, 2004; Weitzer, 2007). Tais abordagens têm sido produtivas: visam a preencher a lacuna entre política pública e teoria sociológicas, levando em consideração tanto o patriarcado quanto o arcabouço jurídico como um ambiente dinâmico que interage para moldar a posição dos profissionais do sexo em qualquer sociedade (Weitzer, 2007). Tais abordagens insistem na multiplicidade: o trabalho sexual parece diferente quando realizado por uma mulher, homem ou pessoa trans. Ele é impactado pelo lugar onde é feito, ou seja, na rua ou em ambientes fechados, e se os lucros são embolsados por um cafetão ou uma cafetina ou se ficam restritos a quem vende. Uma insistência na variação dentro da indústria reflete um engajamento mais profundo entre os pesquisadores e as próprias profissionais do sexo (ibid).
As próprias trabalhadoras sexuais publicaram seus relatos de como seu trabalho deve ser visto. Em Revolting Prostitutes (2018), por exemplo, Molly Smith e Juno Mac mencionam uma reunião com um membro do Parlamento escocês que perguntou aos trabalhadores do sexo por que haviam escolhido a prostituição como carreira. Algumas explicaram que estavam sustentando suas famílias, uma transexual contou que perdeu o emprego após a transição e um homem gay disse que a perda de apoio familiar o levou a considerar esse trabalho. Para surpresa do parlamentar, as preocupações financeiras emergiram como argumentos fundamentais. Smith e Mac escrevem que as pessoas continuam esperando que os empregos tenham um significado transcendentalmente satisfatório, que sejam uma paixão que exceda o ganho monetário.
Etnografias e blogs que detalham as experiências de profissionais do sexo frequentemente repetem o mesmo mantra: as condições do trabalho sexual são consequência de um conjunto de condições legais, econômicas e sociais – nunca exatamente as mesmas. É certo que é ridículo sugerir que uma profissional do sexo que trabalha na própria casa em San Francisco, negociando seus serviços sexuais com homens que trabalham no Vale do Silício, não seja diferente de uma pessoa que comercializa sexo em um apartamento alugado nos arredores de Beirute para alguém que conheceu online.
As literaturas antropológica e histórica sobre o trabalho sexual também atestaram o fato de que a indústria emerge no contexto de uma maior mercantilização da vida. Não é de admirar que a prostituição tenha sido fundamental nas cidades antigas, onde as relações sociais eram definidas pelo comércio e pelo acesso a bens compráveis. Os textos do Gilgamesh falam de Shamhat, uma prostituta sagrada que seduzia os homens a abandonarem uma vida de selvageria pelos frutos da civilização mesopotâmica. Nos escritos de Nils Ringdal, a única maneira de as mulheres da Grécia Antiga alcançarem a liberdade era por meio do trabalho sexual (2007). A profissão tornou-se mais hegemônica em tempos de urbanização significativa, dissolução de estruturas familiares e taxas mais altas de trabalho remunerado (ibid., 27).
Por que os reformadores sociais do século XX retrataram o trabalho sexual como um mal social, levantando preocupações sobre higiene, “perversidade” e um declínio na moralidade? Se o trabalho histórico é preciso, o discurso dos reformadores sociais inverte a trajetória da questão: as pessoas tendem a adotar o trabalho sexual porque as estruturas familiares e as entidades patriarcais não conseguem prover a todos. No entanto, quando as primeiras reformas sociais trouxeram à tona o “problema” do trabalho sexual, tratava-se de proteger soldados, trabalhadores e a moralidade geral do espaço urbano (cf. Hammad, 2016). O trabalho sexual é imaginado como um colaborador, e não como um sintoma de declínio estrutural mais substancial. Na visão reformista, trata-se mais de um catalisador do que de uma resposta.
Uma antropóloga documenta esse mesmo processo entre os Huli da Papua Nova Guiné. O povo Huli costumava pagar um dote exorbitante para firmar um casamento. Holly Wardlow conduziu seu estudo durante um período de crescente migração masculina para cidades mineiras, onde os homens deixavam suas esposas fechadas em casa, impedindo-as de se locomover livremente para fora de suas casas (2006). As mulheres diziam estar “trancadas” devido ao medo de ser agredidas caso se deslocassem pela cidade desacompanhadas de um homem.
Em caso de agressão, elas se veriam abandonadas pela estrutura familiar, pois seus parceiros e familiares não se dariam ao trabalho de ajudá-las no processo. Com o fracasso da reciprocidade patriarcal – ou seja, quando as mulheres percebiam que não receberiam a parte que lhes cabia da riqueza da família em troca do trabalho que exerciam, que os homens e demais membros da família só se interessavam pelas mulheres na medida em que lhes garantissem o dote -, as mulheres respondiam mobilizando sua sexualidade para ganho próprio. Muitas mulheres se afastavam do casamento principalmente para tornar-se “mulheres de passagem” (mulheres que trocam sexo por dinheiro), “retirando suas capacidades físicas da custódia do clã ou do marido, trocando sexo por dinheiro e guardando o dinheiro para si” (ibid. 149). Diz-se que as mulheres tinham “comido a vagina”, isto é, consumido a sexualidade “destinada a suas famílias e clãs”.
Quando o trabalho sexual emerge como uma reação a deficiências precedentes na alocação de recursos e na capacidade das mulheres de garantirem a si mesmas segurança e bem-estar – então não podemos tratá-lo como um fenômeno isolado que atua sobre o situação das pessoas nele envolvidas. O que talvez seja diferente no trabalho sexual é a ameaça que ele representa a nossa concepção majoritariamente aceita do que é público e do que deve permanecer privado (cf. Day, 2007).
Muitas formas de trabalho sexual, especialmente para as mulheres, dizem respeito, em última análise, à mercantilização de relações íntimas, relações que para a maioria de nós geralmente mantêm rituais explícitos e intrincados de adequação. Transformar o “sexo” em algo que pode ser adquirido nos atinge de modo particularmente alienante, como se o último vestígio de dignidade humana tivesse sucumbido à lógica do mercado e do consumo. Obviamente, isso está longe de ser verdade: o trabalho sexual, apesar de suas facetas mutáveis, tem sido endêmico para a civilização humana. Se a mercantilização do “sexo” e do “corpo” são tão insuportáveis para as feministas, devemos questionar sobre essa inclinação primária para mercantilizar, em vez de isolar um caso como nossa única causa.
Sob essa concepção, o tráfico sexual é uma forma excepcional e altamente exploradora de trabalho sexual – não muito diferente das condições excepcionais de trabalho impostas aos trabalhadores domésticos no Líbano e na região do Golfo Pérsico. O tráfico sexual é um trabalho sexual reformulado exclusivamente para o interesse do cliente e das pessoas que lucram com o trabalho do profissional do sexo. Dizer que o tráfico sexual é, em última análise, uma forma excepcional de trabalho sexual não é confundir os dois. De fato, grupos moralistas de direita e feministas de oposição (incluindo a Kafa) insistem na correlação entre tráfico sexual e trabalho sexual – vendo primeiro como consequência do segundo. Entretanto, a criminalização do trabalho sexual no Líbano não diminuiu a preponderância do tráfico sexual. Em vez disso, é a ilegalidade do trabalho imigrante, a limitação de seus direitos trabalhistas e a vulnerabilidade econômica trazida pelos saques e banditismo do estado libanês que colocam as pessoas em condições que as tornam propensas à exploração sexual e laboral.
A semelhança entre os dois também é construída com na premissa de que não existe trabalho sexual voluntário. Tal segundo argumento é igualmente duvidoso: as pessoas geralmente encontram grande insatisfação no trabalho, apesar da respeitabilidade desse trabalho, e não há como provar se alguém é genuinamente coagido se alegar que está fazendo uma escolha. Neste caso, continua sendo um dever moral e político melhorar as condições de trabalho daqueles que fazem parte do mercado de trabalho como profissionais do sexo.
Líbano, sexo e a Kafa
O Estado libanês adota uma posição complexa e muitas vezes confusa em relação ao trabalho sexual. O Estado legalizou a indústria pela primeira vez em 1931, sob o mandato francês. Naquele período, determinados bordéis receberam permissão legal para operar, as vacinações e os exames eram solicitados semanalmente, e o governo classificou as trabalhadoras em duas categorias (Khalaf, 1965). Praticamente pouco se sabe sobre a vida das profissionais do sexo entre aquele período e agora.
Uma razão para isso é o fato de as trabalhadoras do sexo estarem em situação jurídica precária desde que o governo parou de emitir licenças legais para o trabalho sexual na década de 1970. Uma infinidade de leis rege a solicitação de sexo, e as trabalhadoras do sexo podem ser acusadas desde crimes relacionados à promoção do trabalho sexual até mesmo a indecência pública (Saleh & Qubaia, 2015). A vergonha e a culpa em relação ao trabalho sexual são geradas pela própria legislação em vigor para “salvaguardar a sociedade”.
No entanto, os “Super Night Clubs”, como são chamados os clubes de striptease no Líbano, seguem empregando abertamente profissionais do sexo sob um “esquema de visto de artista” (Nota do autor: visto emitido para artistas estrangeiros e que também é usado por trabalhadoras sexuais estrangeiras para entrar no Líbano). Esses clubes operam com o total anuência das comunidades locais e do Estado e são regulados por meio de diretrizes da ISF (Kafa 2014:10).
Em artigo publicado na Foreign Policy (Anderson, 2012), a jornalista pôde falar com uma das trabalhadoras, Linda, na presença do chefe dela. Linda parece chateada no artigo. Reclama que vir ao Líbano foi “o maior erro de sua vida”. (Anderson, 2012). O artigo revela que a maior parte do direito de ir e vir dessas imigrantes está sob o controle de seus empregadores, que geralmente retêm os passaportes e as incentivam a fazer sexo com seus clientes. O controle legal e econômico sobre essas mulheres também as silencia pelo medo da deportação.
Frequentemente, a relação sexual com clientes ocorre durante os horários de folga concedidos a essas mulheres, absolvendo os proprietários das boates que as empregam de processos legais e transferindo a responsabilidade diretamente para as trabalhadoras. Essa configuração jurídica excepcional combina a ilegalidade com a despolitização do assunto (incumbência da responsabilidade da regulamentação a funcionários não eleitos do setor de Segurança Geral dos governos), estabelecendo essa forma de trabalho sexual sancionado pelo Estado no Líbano como uma indústria lucrativa para o governo e para a indústria do turismo, às custas daquelas que realizam o trabalho real.
Por trás dessa intrincada rede de desaprovação e desregulamentação legal existe um fato simples: o ônus legal e social da indústria sancionada pelo Estado recai sobre as profissionais do sexo. As duras leis de imigração colocam as trabalhadoras estrangeiras sob custódia legal de seus empregadores, dando a estes total controle sobre a mobilidade delas. Qualquer atividade “ilegal” tende a ser restrita ao “tempo livre” das trabalhadoras, durante o qual elas estão a serviço dos empregadores, mas permanecem legalmente culpadas pelo ato.
Temos um Estado que concede ao empregador poder sobre a situação da empregada. Tal posicionamento efetivamente transforma profissionais do sexo em escravas sexuais, reforçando o controle totalitário sobre o corpo, o tempo e a mobilidade dessas trabalhadoras.
Em abril de 2016, durante o feriado da Páscoa, um grupo de mulheres pegas por uma quadrilha de tráfico sexual planejou sua fuga do “Super Night Club” Chez Maurice em Ma’amelten. A cidade de Ma’amelten é conhecida por seus bordéis e pela disponibilidade de sexo comprável (Anderson, 2012). Após a fuga, elas pegaram uma minivan para o sul de Beirute, onde foram redirecionadas para a polícia. O ataque das forças de segurança interna ao Chez Maurice expôs uma situação horrível: 75 mulheres foram presas, torturadas e forçadas a fazer sexo com clientes para arrecadar “gorjetas”. Além dos seguranças, dos proprietários e dos facilitadores de estupro, um médico foi preso pela realização de mais de 200 abortos nas mulheres cativas (Human Rights Watch, 2016).
A ISF classificou esses ataques como um sucesso em termos de publicidade, apesar dos avisos da Human Rights Watch (HRW) sobre a ineficiência do sistema judiciário libanês para lidar com o tráfico sexual (2016). Apenas dois anos após o incidente em Ma’amelten, a HRW mostrou-se correta. A Middle East Eye anunciou que um policial sênior da unidade de moralidade foi condenado por envolvimento com o tráfico de mulheres (2018).
Dentro do mesmo espírito de total rejeição ao trabalho sexual como um meio viável de trabalho, a Kafa respondeu, em 2016, à linguagem simpática da HRW em relação à descriminalização do trabalho sexual, postulando uma relação entre trabalho sexual legalizado e aumento do tráfico sexual (2016). Um trecho de sua resposta diz: “descriminalizar todo o comércio sexual significa avançar na regulação e, consequentemente, legalizar a prática da cafetinagem”.
Aqui, torna-se pertinente examinar a relação entre trabalho sexual e tráfico sexual. Para a Kafa, o Estado deve agir como um bom policial, capaz de proteger as mulheres (e a preocupação principal é com as mulheres) dos perigos do tráfico sexual. No entanto, não seria verdadeiro afirmar que o Estado libanês “patrocina” ativamente os envolvidos com o tráfico sexual sem a necessidade de descriminalizar o trabalho sexual? De fato, a ambígua situação jurídica do trabalho sexual e o direito legalmente consagrado do empregador sobre os trabalhadores estrangeiros facilitam o tráfico sexual. As mulheres que foram trazidas para o país foram torturadas por um membro da inteligência da Força Aérea da Síria (Shaheen, 2016b). Além disso, elas foram trazidas para o Líbano com base no emprego legal como trabalhadoras de restaurantes. Elas foram escolhidas com base na vulnerabilidade – sabendo que poderiam escapar das acusações de tráfico se as famílias das vítimas não as reivindicasse. O maior temor dos traficantes de mulheres figurava na existência de uma rede familiar que reivindicasse aquelas mulheres, e não “um Estado” que os pudesse processar.
Se a Kafa considerasse o problema do trabalho sexual um problema trabalhista, melhores soluções poderiam emergir. Na luta pela solidariedade com as trabalhadoras sexuais, é preciso entender todo o emaranhado de leis, políticas e contingências que moldam a entrada delas na indústria e sua transformação de meras trabalhadoras em vítimas de tráfico. A diferença entre os dois casos está contida nas leis de kafala, que colocam os trabalhadores à mercê de seus empregadores – tornando-os econômica e legalmente dependentes de sua aprovação. Também depende do estigma cultural e social que recai sobre o trabalho sexual, forçando essas profissionais a empreender seus negócios em segredo, ou então sofrer retaliação de familiares e amigos.
Se o movimento optar por uma posição que opere com base na premissa de que o trabalho sexual é tão legítimo quanto qualquer outro, poderemos começar a trabalhar contra os efeitos socialmente estultificantes de alienar as trabalhadoras sexuais. Podemos ser capazes de estabelecer as bases para uma luta que consagre os direitos dos trabalhadores de manter todo o lucro que obtêm de seu trabalho, para que as profissionais do sexo desempenhem o trabalho na segurança de suas casas, com o apoio de um sindicato e de uma aliança feminista solidária.
A demanda por trabalho sexual?
O relatório publicado em 2014 pelo grupo analisa a “motivação, os fatores socioeconômicos e as posições ideológicas sobre o trabalho sexual” daqueles que pagam por sexo a profissionais do ramo no Líbano (Kafa 2014). O site do grupo afirma que ele figura entre as primeiras organizações libanesas a visar a demanda como a principal causa do trabalho sexual, muito semelhante às feministas de oposição mencionadas anteriormente. Após o término do relatório, ele foi convertido em campanhas de conscientização na TV, palestras em universidades e eventos públicos.
Nem todos os grupos feministas no Líbano concordaram com a caracterização e a cobertura do caso de tráfico de mulheres ocorridos em 2016 em Ma’amelten, nem com o relatório da Kafa de 2014. Alguns grupos reclamaram da frágil distinção entre profissionais do sexo e mulheres vítimas de tráfico sexual (R; Yusra & A; Sara, 2016). É importante ressaltar que uma ativista da vida das trabalhadoras do sexo trans lançou luz sobre o fato de o relatório da Kafa ter ignorado a dependência do trabalho sexual pela comunidade queer em sua tentativa de aumentar o policiamento da indústria (Saleh & Qubaia, 2015). Estas são críticas dignas: o trabalho da Kafa e os relatórios posicionam o trabalho sexual como um ataque ao status das mulheres, desconsiderando completamente o fato de que as mesmas leis e departamentos de polícia criminalizam o trabalho sexual de homens e mulheres trans.
Os planos de recomendação de políticas, pesquisa e militância da Kafa em relação ao trabalho sexual tornaram-se a posição dominante na sociedade civil libanesa. Como uma anedota pessoal que atesta este fato, quando eu era membro subgraduado do “clube feminista intersetorial” da Universidade Americana do Líbano (LAU), tentamos organizar uma palestra sobre os direitos das trabalhadoras sexuais. Apesar de correr Beirute estendendo a mão a várias organizações de defesa de direitos e iniciativas feministas, somente a Kafa mostrou-se disposta a aparecer e falar.
O relatório de 60 páginas da Kafa começa com um parágrafo que enquadra a indústria como resultado direto da demanda masculina. A entidade desenvolve seu argumento com base em entrevistas com cinquenta e cinco homens que pagaram por serviços sexuais pelo menos uma vez (Kafa 2014: 14). O relatório faz a esses clientes perguntas sobre os lugares, as razões e os métodos de contratação de sexo. Em seguida, os autores do estudo definem o problema como originado principalmente da fonte por eles diagnosticada. Os clientes são representados como o único fator a partir do qual surge a indústria do trabalho sexual. A partir dessa premissa, o relatório segue em frente apontando a demanda de homens por sexo pago como o fator determinante para o dilema representado pelo trabalho sexual. Para os autores do relatório da Kafa, sem essa demanda:
“… não haveria fornecimento de mulheres para fins de prostituição, não haveria cafetões nem traficantes recrutando e gerenciando mulheres e meninas para atender às diversas demandas de quem paga por prostituição, e não haveria empresas e indivíduos operando nacional ou transnacionalmente para recrutar ou traficar mulheres, eventualmente tornando obsoletos os indivíduos e a indústria que lucram com a exploração sexual de mulheres e meninas.” (Kafa, 2014: 12)
Dada a forma como o problema é enquadrado – como uma demanda masculina -, a conclusão lógica é que a abolição do comércio sexual será alcançada por intermédio da penalização do acesso dos homens ao trabalho sexual, criminalizando o cliente e legalizando o trabalho. Isto costuma ser chamado de Modelo Nórdico, pois tem origem na Suécia. Não é surpresa que o restante do relatório se concentre nos relatos misóginos e desinformados feitos pelos clientes sobre por que os homens pagam por sexo e como as profissionais do sexo devem se comportar. O relatório funciona como um curto-circuito, anunciando logo de início a fonte do problema e depois investigando sua origem e localizando-a onde eles disseram que estaria.
A Kafa considera que, ao demonizar o incentivo ao sexo pago e desconstruir a justificativa biológica para o trabalho sexual, ela pode, por sua vez, convencer o Estado a criminalizar clientes e, assim, inibir o trabalho sexual. Essa estratégia corre o risco de colocar a Kafa entre os movimentos conservadores e moralistas da direita, que rejeitam o trabalho sexual sob a mesma premissa de vício moral inerente. Além disso, tal suposição remove do trabalho sexual os fatores estruturais que o situam, como a relação entre oportunidade econômica, acesso ao casamento e o tabu que existe em torno da prática sexual no Líbano.
O relatório dedica muitas páginas às respostas dos entrevistados sobre por que o trabalho sexual existe (Kafa 2014: 31) e por que os homens o procuram: “Deus concedeu o impulso sexual aos homens”. (ibid 35). Ou simplesmente o que eles procuram em uma mulher: “Queria experimentar pagar prostitutas e fazer sexo com outra pessoa que não minha esposa. Meus amigos estavam comigo e me aconselharam a tentar.” (ibid: 37). Todas as respostas são reproduzidas em destaque no relatório para pintar uma imagem do cliente como chave. Está claro qual é a intenção dessa colocação de palavras: intimidar a sexualidade masculina dissidente entre a classe trabalhadora. Ao conceder aos clientes a voz patriarcal, sexista ou particularmente agressiva, o que observamos é um posicionamento teatral do problema marginalizado: há apenas comentários sexistas feitos por homens, sem relatos das mulheres sobre como ingressaram no trabalho sexual, como tomaram essa decisão, seus desejos, suas necessidades ou suas vontades – se elas querem permanecer no negócio ou sair. Ao destacar essas vozes, a Kafa cria uma imagem do cliente como o violento criador da indústria do sexo.
O que se segue às citações mencionadas acima são recomendações e uma página com a seguinte frase: “… o risco de ser penalizado legalmente pode ser o meio mais eficaz para desencorajar os homens de pagar e usar mulheres para fins sexuais”. (Kafa 2014: 56)
Algumas feministas criticaram esse ponto de vista por supervalorizar a posição e o papel dos homens na indústria e por marginalizar as ideias das trabalhadoras do sexo sobre seu trabalho (Kesler, 2002). Não é de surpreender que, mesmo quando organizações feministas como a Kafa tentam estudar empiricamente a questão das trabalhadoras sexuais, a ênfase é frequentemente direcionada a um plano baseado na demonização dos clientes, à custa de silenciar as trabalhadoras do sexo e a possibilidade de visões diferentes sobre seu trabalho.
O que falta então no relatório são as vozes das mulheres que comercializam sexo e o histórico dos homens que pagam pelos serviços. Em vez de perguntar por que as mulheres se engajam no trabalho sexual, o relatório aponta o trabalho sexual como causa direta do desejo sexual dos homens. Ou como Ghada Jabour, apontado como autor principal do relatório, disse certa vez: “[tudo] gira em torno da sexualidade dos homens” (Shaheen, 2016a).
O que ocorre ao longo desse relatório é a fetichização do desejo sexual dos homens como prenúncio único da miséria e da violência que recaem sobre profissionais do sexo. É como se, para os autores do relatório, não houvesse legislação trabalhista, Estado para regular, nem estrutura socioeconômica que reúna cliente e trabalhador. Em vez disso, a história se desenrola a partir da sugestão do desejo do homem e ali termina. É por meio da construção de uma narrativa como essa que a Kafa pode defender a proibição da contratação de serviços sexuais. Por fim, aprendemos mais sobre a vida dos homens que pagam por sexo do que sobre as mulheres que trabalham com isso.
O problema do trabalho sexual é retratado não mais como o da condição de trabalho, pobreza e abuso. Limita-se a uma questão de repugnância: como pode o cliente ter dito isso sobre a prostituta? como homens estrangeiros poderiam estar comprando seu acesso aos corpos de mulheres? Os instintos moralistas (e indiscutivelmente patriarcais) são invocados para afirmar que o trabalho sexual é uma indústria intolerável (e, portanto, impossível de ser reformada).
Estratégias & Recomendações
Depois de esmiuçar ponto a ponto as problemáticas da conceituação da Kafa, como reimaginar a questão do trabalho sexual como um fenômeno social sem ofuscar sua condição material? Isto significaria reconhecer que as mulheres podem relutar em deixar a indústria e questionar por que isso acontece. Nesta frente, a literatura etnográfica sobre profissionais do sexo sugere que as mulheres no trabalho sexual experimentam mais controle sobre seu salário, mobilidade e estabilidade na indústria, e não fora dela, como trabalhadoras em empregos considerados normais (cf. Towne & Brennan, 2004). Um controle maior sobre os ganhos é especialmente o caso quando a saída do trabalho sexual geralmente significa uma saída para um casamento heterossexual tradicional, um trabalho assalariado instável e novas formas de dependência (ibid). São justamente essas as condições que as pessoas que entraram no negócio buscaram abandonar.
Quando a Kafa promove seu modelo abolicionista, parte da premissa do sucesso do modelo nórdico. O modelo, implementado na Suécia, na Noruega e na Finlândia, criminaliza o ato de pagar por sexo. Como deixa claro o advogado finlandês Essi Thesslund, essa política opera convidando o Estado a criminalizar os clientes e vigiar as trabalhadoras sexuais. O próprio modelo de política parte da premissa de que todos os profissionais do sexo podem ser realocados em empregos ou reintegrados em instituições educacionais. Fundamentalmente, essa ideia não leva em conta a bagunça das situações sociais que culminam no tráfico de mulheres no Líbano: regras terríveis de imigração, homofobia e transfobia que excluem as pessoas do mercado de trabalho e a pura incapacidade do mercado de trabalho de oferecer uma porta de entrada que não seja a do nepotismo.
O modelo “nórdico” opera dentro de uma economia “nórdica”, com benefícios sociais generosos, educação gratuita, auxílio-desemprego e assistência médica. Implementá-lo no capitalista farsesco e sectário do Líbano, sem vislumbrar uma transformação estrutural, é equivocado, para dizer o mínimo.
Uma das respostas mais populares ao trabalho sexual nesse modelo está nos programas de saída. Eles têm como premissa o valor inerente do trabalho não sexual. É difícil imaginar a existência dessas condições de trabalho em qualquer lugar, muito menos em um país envolto em uma crise financeira e em um levante revolucionário. Para ser justo com a Kafa, o relatório foi publicado quatro anos antes do mais recente levante. No entanto, o país atravessou problemas financeiros e impôs obstáculos ao emprego por um período prolongado. Os trabalhadores que imigram da Síria, de Bangladesh, do Sri Lanka e da Etiópia foram alguns dos mais afetados pela ausência geral de direitos dos trabalhadores – pois estão excluídos até mesmo dos poucos direitos implementados que existem.
Então, como repensarmos uma “estratégia” para promover a solidariedade com profissionais do sexo e pessoas que inadvertidamente podem ser traficadas? Primeiro, devemos reconhecer que nos próximos tempos a piora da situação econômica provavelmente levará mais indivíduos ao trabalho sexual e criará condições que tornarão a exploração mais palpável. A resposta não deve ser a tentativa de criminalizar a compra e a venda de serviços sexuais. Tal movimento simplesmente limitaria as oportunidades de trabalho sexual em geral, sem uma alternativa concebível dentro das condições econômicas – é como dizer às trabalhadoras do sexo que retornem às condições de alienação e imposição que desde o início buscavam deixar para trás. Em vez disso, devemos procurar tornar as condições das profissionais do sexo as mais seguras possíveis. Isto inclui descriminalização total, sindicalização, provisão de testes e proteção.
Em segundo lugar, devemos lidar com as leis que excluem homens e mulheres estrangeiros da proteção trabalhista. Tais condições criam um subconjunto de pessoas que são mais exploráveis do que os cidadãos e uma diferenciação legal que prejudica os imigrantes, ao mesmo tempo em que constrói a fachada de uma força de trabalho nativa diferenciada. Essa diferenciação prejudica nossa capacidade de fomentar a solidariedade entre os trabalhadores, mas o mais importante está no agravamento das condições de trabalho – já que a legalidade e a capacidade de sustento das pessoas no Líbano se tornam dependentes da aquiescência a condições de trabalho adversas.
Essa questão está alinhada com o problema do tráfico de mulheres. A Kafa tenta há muito tempo forçar o Estado a processar os traficantes sexuais e não as pessoas (geralmente mulheres) que são traficadas. O caso de Johnny Haddad, o policial indiciado por acusações de tráfico sexual enquanto trabalhava na unidade antitráfico, expõe a responsabilidade do Estado pelo tráfico sexual. O fato de o Estado permitir a existência de um espaço jurídico ambíguo para o funcionamento dos “Super Night Clubs”, enquanto os policiais facilitam a libertação de vítimas de tráfico sexual da cadeia sem o devido processo legal (cf Shaheen, 2016), mostra que o Estado desempenha um papel ativo na criação das condições de tolerância à proliferação de tratamentos desumanos de profissionais do sexo e de pessoas traficadas por sexo. Em resposta, devemos abandonar o trabalho com o Estado sectário tal como está e nos posicionarmos com uma revisão total da gestão estatal do trabalho sexual.
Em vez disso, devemos propor nossos modelos de legislação que descriminalizam o trabalho sexual, protegem os trabalhadores imigrantes e criminalizam as condições desumanas de trabalho. Essas “leis” não podem ser implementadas dentro das fronteiras do Estado dominado por um senhor da guerra sectário, empenhado em acumular riqueza para seus patrocinadores e seguidores. A solução se encontra apenas dentro dos objetivos da revolução atual, de derrubar o Estado sectário e substituí-lo por uma alternativa humana.
Mais ainda, a solução da Kafa para um programa de saída ignora completamente o fato de refugiados e imigrantes representarem uma parte central da comunidade do trabalho sexual no Líbano. Ao destacar o ‘sexo’ como o problema central do trabalho sexual, a Kafa ignora como as posições racistas anti-refugiados do Estado libanês criam condições perfeitas para a exploração de imigrantes, não importa o que façam. Mesmo que o trabalho das mulheres nos empregos regulares seja considerado mais “humano” e menos explorador do que o trabalho sexual, as próprias trabalhadoras sexuais não foram consultadas.
De fato, o relatório da Kafa omite as vozes das mulheres, assim como seus desejos, necessidades e histórias que podem complicar a imagem que Kafa tenta transmitir. Dado que uma alternativa ao trabalho sexual não seja realisticamente possível e que as profissionais do sexo podem rejeitar a ideia de melhores condições – por que não aceitar que essas condições são passíveis de mudança?
Sem um mercado de trabalho viável, parece mais realista advogar amplamente a descriminalização da indústria do trabalho sexual, e de acordo com isso implementar novas leis trabalhistas que penalizem a exploração e o tráfico. Com uma abordagem de mobilização, a criação de um sindicato de profissionais do sexo no Líbano abriria espaço para as trabalhadoras se envolverem em negociações coletivas com os empregadores e o Estado.
Isso é fundamental para que o Líbano se desfaça do domínio dos “Super Night Clubs” sobre o setor. A existência de um sindicato encorajaria políticas saudáveis e democraticamente orientadas, essenciais para melhorar as condições e garantir que a exploração e o tráfico sejam combatidos. Criaria outra entidade social, contrária ao controle estatal das relações de trabalho.
Por fim, mais pesquisas etnográficas precisam ser encomendadas pelos atores da sociedade civil, para que eles possam entender de maneira mais abrangente as questões e restrições do trabalho sexual tanto como uma questão trabalhista quanto feminista no Líbano.
Um trabalho nesse sentido traria à tona a exploração e a persistência da indústria que o relatório estatístico frequentemente falha em expor (Östergren, n.d.). O trabalho de campo está em melhor posição de compreender os processos de entrada das mulheres no trabalho sexual, documentando as histórias de vida das próprias profissionais (Força-Tarefa Nacional sobre Prostituição, 2008; Towne & Brennan, 2004). Mais importante ainda, um projeto de pesquisa que concentre as demandas dos trabalhadores do sexo e questões autodefinidas constitui uma forma mais ética e democrática de intervenção da sociedade civil.
Conclusão
Estudar o trabalho sexual como um fenômeno oriundo das contingências das migrações, do trabalho e das relações de gênero ajuda a tornar a análise adequada e abrangente. Argumentei neste artigo como essa concepção pode nos ajudar a ir além das atitudes moralistas que tendem a ser pautadas por um entendimento reacionário e fetichista de uma situação política complicada e opressiva. O que se pode aprender aqui é que o trabalho sexual não é diferente de qualquer outra forma de trabalho.
O que o diferencia do trabalho sexual forçado são as condições que permitem aos empregadores agirem com impunidade, particularmente a falta de consideração do Estado pelos trabalhadores considerados dispensáveis. É nesse ponto que descobrimos por que os imigrantes e as pessoas LGBT estão super-representadas na indústria do sexo: é mais provável que enfrentem obstáculos para ingressar no mercado de trabalho. Tais obstáculos, além da exclusão geral das redes de apoio baseadas nas relações familiares, os tornam particularmente vulneráveis à exploração em geral. Em um país com pouco acesso à educação, não é de admirar que as pessoas encontrem em seus corpos uma maneira de obter renda e sobreviver.
Qual deve ser a nossa resposta como ativistas e feministas? Primeiro, devemos evitar modelos desenvolvidos em contextos muito diferentes e esperar implementá-los aqui sem ajustes.
A crise dos refugiados, a ausência de qualquer coisa que se assemelhe a um Estado de bem-estar e o sexismo e a homofobia sem freios exalados pelo Estado libanês são notavelmente importantes para a questão do trabalho sexual. Mesmo que concordássemos hipoteticamente que nosso objetivo é eliminar o trabalho sexual, precisaríamos pensar no que isso significa em uma condição de desemprego arraigado, uma economia destruída e nenhuma proteção trabalhista em geral. Também devemos avaliar nossa posição em relação à reforma do Estado, sabendo muito bem quão bem o Estado tem-se saído na perpetuação dos cafetões, por meio de seus serviços de segurança, no desrespeito às leis antitráfico.
Escolhi o trabalho da Kafa não por suas deficiências, mas por causa da maneira como ele incorpora duas tendências que considero críticas. A primeira é colocar a culpa no lado da “demanda” da equação; a segunda é defender o modelo nórdico. Essas duas tendências se assemelham à fetichização do desejo sexual dos homens – proporcionando a força criativa que falta e, inadvertidamente, eximindo o Estado da responsabilidade pela criação de condições para a deterioração dos direitos trabalhistas e pela corrupção. Tal modelo simplesmente ignora a existência de profissionais do sexo trans e gays, que podem achar que seus clientes já são criminalizados sob códigos penais que proíbem relações não-heterossexuais. Em vez disso, trago uma abordagem mais holística, levando em consideração as relações sociais que dão origem ao trabalho sexual e que devem no mínimo ser tratadas se o quisermos abolir. Sem uma abordagem holística da questão do trabalho, nossa atitude se torna moralista, preocupada mais com as nuances sexuais do trabalho do que com a situação das pessoas envolvidas – resgatando uma imagem fabricada de dignidade moral às custas da violência que permeia o mundo das trabalhadoras sexuais na atualidade. Trata-se de uma questão urgente no tempo politicamente turbulento de mobilização e insurreição de hoje.
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Ali Reda faz pós-graduação no Departamento de Antropologia Social da Universidade de Cambridge. Ele desenvolve pesquisas sobre ativismo LGBT e identidade de gênero no Oriente Médio. Sua tese de mestrado discute a homofobia, seus fundamentos socioeconômicos e sua reprodução no Líbano.