COVID-19

Portugal: carta aberta ao governo pede apoio às trabalhadoras sexuais em tempos de pandemia

Por Ana Cristina Pereira, para Público PT

“O que se pretende é que o Estado leve em consideração que, se as pessoas têm de suspender a atividade, também devem ter algum tipo de proteção, alguma fonte de renda que lhes permita cobrir as suas necessidades e as das suas famílias”, explica coordenador do POWER – Promotion Of sexWorkErs Rights, um projeto promovido pela Agência Piaget para o Desenvolvimento/Porto G.

É uma carta aberta à ministra do Trabalho de Portugal, Ana Mendes Godinho, com o conhecimento dos diversos grupos parlamentares. Alerta para “a situação de total falta de proteção que as pessoas que exercem trabalho sexual e seus familiares enfrentam”, agora que a epidemia se alastrou, o país mergulhou no estado de emergência e a sua atividade tem mesmo de ficar suspensa. E pede por um pacote de medidas extraordinário.

A carta traz a assinatura da Rede sobre Trabalho Sexual (RTS), que reúne alguns acadêmicos, parte das organizações que em Portugal intervêm nesta área e algumas pessoas que prestam ou prestaram serviços sexuais (prostituição, pornografia, strip tease, danças e chamadas eróticas). Também a assinam a Colectiva, o Movimento de Trabalhadores do Sexo (MTS) e o Grupo de Partilha d’ A Vida.

Sendo esta uma “atividade informal não coberta, por força da lei, pelas garantias e direitos laborais que assistem a qualquer trabalhador, a maioria dos seus profissionais encontra-se na iminência de atingir um ponto crítico”, lê-se. “Atesta-se uma dificuldade severa na obtenção de rendimentos ou de meios de subsistência, bem como no acesso a modelos alternativos de trabalho (teletrabalho ou webcams).”

Aludindo “aos efeitos nefastos” do não reconhecimento do trabalho sexual como um trabalho, os signatários enfatizam a eventualidade de haver quem, numa situação de extrema necessidade, seja impelido a “retomar (ou mesmo a não suspender) a sua atividade”. “Ignorar a real situação desta classe, sobretudo num momento como o atual, nos conduzirá certamente a cenários sinistros, quer numa perspectiva dos direitos humanos, quer na ótica da saúde pública.”

Pedem então à ministra que esclareça quatro aspectos: “De que forma pretende o Governo garantir que as pessoas que fazem trabalho sexual e suas respectivas famílias tenham acesso a mecanismos de proteção decorrentes da descontinuidade da sua atividade ou da eventualidade de ficarem doentes? A que mecanismos poderão recorrer a sociedade civil e as organizações de base comunitária para mitigar o impacto provocado pela situação de calamidade pública na vida destas pessoas? Que medidas pretende implementar no sentido de garantir o acesso a exames e diagnóstico do coronavírus entre migrantes, evitando que o receio de regresso ao país de origem contribua para o aumento da sua vulnerabilidade? Que respostas pretende dar ao problema de falta de alojamento decorrente do fato de um número significativo de pessoas que fazem trabalho sexual serem itinerantes e de não possuírem habitação própria?”

Período de exceção, medidas de exceção

“Isto é um alerta para o fato de o trabalho sexual não ser reconhecido como um trabalho e, como tal, as pessoas que o exercem não serem abrangidas pelas medidas previstas pelo Governo”, resume Pedro Machado, coordenador do POWER – Promotion Of sexWorkErs Rights, um projeto promovido pela Agência Piaget para o Desenvolvimento/Porto G e financiado pela Open Society Foundations.. “Qualquer profissional, numa situação destas, tem direito a proteção se tiver que interromper a sua atividade, prestar assistência aos filhos ou em caso de se infectarem. O que se pretende é que o Estado leve em conta que, se as pessoas têm de suspender a atividade, também devem ter algum tipo de proteção, alguma fonte de renda que lhes permita cobrir as suas necessidades e as das suas famílias.”

Não esperam que a atividade seja regulamentada em plena pandemia, tema que divide a sociedade portuguesa, como ainda este mês se viu com o Tribunal Constitucional proferindo duas decisões contraditórias. Defendem “a necessidade e a urgência de facultar a estas pessoas o acesso a um pacote de medidas extraordinárias de apoio”. “Num período de exceção podem ser aplicadas medidas de exceção”, sublinha Pedro Machado.

A mobilidade é imensa. Muitas pessoas circulam pelo país, fazendo “praças” em casas e apartamentos, isto é, estadias de uma semana, quinze dias ou um mês. Com a propagação do vírus e a tomada de medidas de contenção, “houve alguns despejos”, revela Sérgio Vitorino, do coletivo Panteras Rosa, um aliado da Rede. “No próximo mês, arrisca-se a ter despejos massivos [a esse nível] Estamos informando às pessoas que elas estão protegidas por lei, que não podem ser despejadas.”

Como outros ativistas, Sérgio Vitorino está recorrendo aos anúncios para chegar a estas pessoas, criando uma lista por distrito, com os contatos e as necessidades de cada uma delas – abrigo, alimentação, medicamentos, apoio legal. “Já estamos assoberbados de pedidos de apoio alimentar. Nem todos os municípios tem dado respostas. Suas linhas de emergência estão no limite. Tenho falado com pessoas que têm comida em casa para apenas mais dois dias. Já temos situações de fome.”

Um fundo de emergência

Como explica Maria Andrade, porta-voz do Grupo de Partilha d’A Vida e do MTS, os ativistas procuram se articular com técnicos de instituições que atuam com grupos vulneráveis, como pessoas em situação de rua, trabalhadoras sexuais, usuários de drogas. E estão fazendo chegar ajuda alimentar a quem a pede, através da entrega de cestas básicas ou do acesso a refeições preparadas em cantinas ou refeitórios. Entretanto, procuram angariar fundos para responder às situações de emergência.

Margarida Maria, membro de União do Chapéu de Chuva Vermelho, que integra o MTS, trabalhou vários anos em diversos países, onde fez parte de sindicatos e projetos internacionais como o Global Network of Sex Work Projects. “Neste momento, as várias organizações internacionais estão fazendo campanhas de arrecadação de fundos para ajudar as pessoas que estão em situações mais precárias – trabalhadoras imigrantes, trabalhadoras com filhos, trabalhadoras trans, trabalhadoras sem abrigo ou que moravam nos bordéis que agora estão fechados”, conta. Sugeriu que seguissem o exemplo.

Um fundo de emergência foi criado através de uma plataforma de financiamento colaborativo, a gofundme. A conta, aberta a semana passada pelo Grupo de Partilha d’A Vida, fixou a meta em 30 mil euros. Até agora, arrecadou 940 euros.

“Acho que se pode tirar algumas conclusões sobre como a falta de enquadramento legal da atividade tem impactos muito negativos numa situação destas”, conclui Sérgio Machado, esclarecendo que da Rede sobre Trabalho Sexual fazem parte, entre outros, a Agência Piaget para o Desenvolvimento, as Irmãs Oblatas – Portugal, a Associação para o Planeamento da Família, a Fundação Portuguesa Comunidade Contra a Sida, a Associação Existências, a União de Mulheres Alternativa e Resposta, a TransMissão – Associação Trans e Não-Binária e o MTS.


Ana Cristina Pereira é jornalista, autora dos livros de reportagens Meninos de Ninguém (2009), Viagens Brancas (2011) e Movimento Perpétuo (2016). Escreve para o jornal online português Público, principalmente sobre temas de direitos humanos e exclusão social, como pobreza, desigualdades, dependências, migrações, minorias, reclusão, proteção de crianças e jovens, violência doméstica e políticas de igualdade e de proteção social.