Femifesto: manifesto feminista em favor das trabalhadoras sexuais
Por ocasião do 8 de Março, o Comitê Internacional pelos Direitos das Trabalhadoras Sexuais na Europa (ICRSE) publicou o manifesto do coletivo Feminists For Sex Workers, cuja tradução publicamos a seguir.
1. Reconhecemos as trabalhadoras sexuais como especialistas sobre suas próprias vidas e necessidades.
O feminismo, como sempre fez no passado, tem que apoiar a agência e a autodeterminação das mulheres sobre seus corpos e seu trabalho. As trabalhadoras sexuais não devem ser uma exceção.
2. Respeitamos a decisão das trabalhadoras sexuais de engajar-se no trabalho sexual.
Como feministas, rejeitamos declarações misóginas segundo as quais as trabalhadoras sexuais “vendem seus corpos” ou “se vendem a si mesmas”; sugerir que o sexo implica dar ou perder parte de si mesma é profundamente antifeminista. Mulheres não são diminuídas pelo sexo. Nós também rejeitamos qualquer análise que sustente que as trabalhadoras sexuais contribuem para a “comodificação das mulheres, do sexo ou da intimidade”. Nós não culpamos as trabalhadoras sexuais por causarem dano a outras mulheres, e sim o patriarcado e outros sistemas de opressão.
3. Afirmamos a capacidade das trabalhadoras sexuais para reivindicar consentimento.
Declarar que ele é impossível no trabalho sexual retira das trabalhadoras sexuais a capacidade de definir suas próprias fronteiras, e a capacidade de falar contra a violência. Propagar a ideia de que os clientes “compram” os corpos ou o consentimento das trabalhadoras sexuais – e, sendo assim, podem fazer o que quiserem com uma trabalhadora sexual – tem consequências perigosas para a vida real das trabalhadoras sexuais. Mais do que isso, ao dizer que todo trabalho sexual é uma forma de violência, essas ideias podem levar à repressão do trabalho sexual em nome do combate à violência – ainda que a repressão ao trabalho sexual na verdade aumente a vulnerabilidade das trabalhadoras sexuais à violência.
4. Lutamos por medidas que tragam ajuda real e apoio a vítimas do tráfico, com respeito total à proteção de seus direitos humanos e laborais.
Assim sendo, denunciamos a atitude de confundir migração, trabalho sexual e tráfico. Como resultado dessa confusão, trabalhadoras sexuais migrantes são particularmente escolhidas como alvo de assédio policial, batidas, detenções e deportações, e são empurradas para ambientes de trabalho clandestinos, onde elas estão mais vulneráveis à violência e à exploração.
5. Lutamos para eliminar todas as formas de violência contra trabalhadoras sexuais.
O trabalho sexual não é uma forma de violência, mas as trabalhadoras sexuais são particularmente vulneráveis a violência sexual e por parte de parceiros íntimos por causa da criminalização e, frequentemente, de opressões cruzadas, como sexismo, putafobia, homofobia e transfobia, racismo e classismo. A opressão e a criminalização tornam as trabalhadoras sexuais vulneráveis à violência por parte de indivíduos serviços sociais, a polícia, funcionários da imigração e o Judiciário. Ver o trabalho sexual como intrinsecamente violento e o consenso das trabalhadoras sexuais como inválido só serve para normalizar a violência contra elas.
6. Batalhamos diariamente pelo fim da misoginia em todas as esferas da vida.
A misoginia, porém, não é a causa do trabalho sexual, mas surge como resposta a atos e escolhas das mulheres, tais como usar maquiagem, fazer um aborto ou vender sexo. Nós identificamos sentimentos e atos misóginos como o problema e rejeitamos propostas para mudar ou eliminar comportamentos que “provocam” a misoginia. Tentar eliminar o trabalho sexual sob o argumento de que ele provoca misoginia é concordar com aqueles que dizem que algumas ações das mulheres – como vender sexo – são intrinsecamente merecedoras de misoginia.
7. Respeitamos os direitos das migrantes.
Mulheres migrantes enfrentam acesso limitado ao trabalho e, frequentemente, pouco ou nenhum acesso à seguridade social. Algumas daquelas que buscam refúgio vendem serviços sexuais por terem opções muito limitadas para ganhar a vida. A criminalização dos clientes e outras formas de criminalização do trabalho sexual põem as trabalhadoras sexuais sob ameaça constante de violência policial, detenção e deportação, negando a elas o direito à justiça e a compensações. A criminalização dos clientes remove sua fonte de renda e não lhes oferece nenhuma alternativa para a sobrevivência.
8. Apoiamos os direitos LGBT.
A rejeição das pessoas LGBT por suas famílias e os obstáculos à educação e ao emprego em estruturas cississexistas e heteronormativas frequentemente tornam o trabalho sexual uma das pouquíssimas oportunidades econômicas e de emprego para pessoas LGBT, especialmente as mulheres trans. Leis contra o trabalho sexual não beneficiam pessoas LGB e trans, por não tratarem dessas facetas complexas da marginalização social. Esse é o caso, particularmente, das mulheres trans, à medida que as leis que criminalizam o trabalho sexual são usadas particularmente para separar e perseguir esse grupo, independentemente de se a pessoa em questão é trabalhadora sexual ou não.
9. Clamamos pela descriminalização total do trabalho sexual.
Há evidências fortes de que o Modelo Sueco e todas as outras formas de criminalização do trabalho sexual prejudicam as trabalhadoras sexuais. O Modelo Sueco as empurra para a pobreza, reduz seu poder de negociação com os clientes, criminaliza-as quando trabalham juntas para buscar segurança, as expulsa e as deporta. Ao permitir que as trabalhadoras sexuais se organizem coletivamente como trabalhadoras, a descriminalização reduz a vulnerabilidade das trabalhadoras sexuais a práticas laborais exploradoras e à violência.
10. Nos declaramos contra a precarização crescente do trabalho da mulher.
Historicamente, nas sociedades ocidentais sob o capitalismo e o patriarcado, o trabalho da mulher (trabalho doméstico, prestação de cuidados, trabalho sexual, trabalho emocional), considerado “feminino”, tem sido subvalorizado, mal pago ou tornado completamente invisível e sem pagamento. Em todo o mundo, mulheres, inclusive as trabalhadoras sexuais, têm empregos que são mais mal pagos e mais inseguros; elas trabalham sob condições de exploração – do emprego criminalizado, sazonal ou temporário ao trabalho doméstico, flexível ou de tempo parcial à terceirização, ao trabalho como freelancers ou como pessoas autoempregadas. O trabalho sexual tem similaridades com outros tipos de prestação de cuidados, por ser associado principalmente à mulher e, frequentemente, a mulheres de cor e mulheres migrantes. Assim como as trabalhadoras sexuais, as prestadoras de cuidados frequentemente não desfrutam dos mesmos direitos que trabalhadoras em empregos normalmente associados a homens. Portanto, a defesa dos direitos das trabalhadoras sexuais tem que enfatizar seus direitos trabalhistas e precisa tratar das condições precárias de trabalho e da exploração na indústria sexual, e lutar por enquadramentos legais que deem poder às trabalhadoras sexuais enquanto trabalhadoras.
11. Demandamos a inclusão das trabalhadoras sexuais no movimento feminista.
Sua inclusão traz percepções, energia, diversidade e experiência de mobilização inestimáveis para o nosso movimento e desafia nossas pressuposições sobre gênero, classe e raça. As trabalhadoras sexuais estão entre as primeiras feministas do mundo; sem elas, nossa comunidade se diminui.
Atualização: Em setembro de 2021, o Comitê mudou seu nome para European Sex Workers’ Rights Alliance (ESWA).
A tradução errou uma palavra muito importante. Não é vonsenso é consentimento no item 3.
Texto mt importante de qqr forma
Tem razão. Obrigado, vou corrigir.
Texto muito bom! Parabéns!!!
Só tenho uma pontuação: considerem usar “mulheres racializadas” em vez de “mulheres de cor”. O termo “of color” faz mais sentido no contexto anglófono. Aqui na lusosfera, não.