Debate: os socialistas e a questão do trabalho sexual
Faz mais de cem anos que os proponentes de uma sociedade sem patrões debatem a questão do trabalho sexual e se (ou como) as pessoas que atuam nessa indústria devem ser levadas em conta nas análises que dão base à luta dos partidos socialistas e comunistas.
Trabalho sexual é trabalho? Do ponto de vista dos socialistas as pessoas que ganham a vida com sexo comercial merecem ter representação sindical e política? E caso mereçam, como organizar uma categoria profissional tão heterogênea e dispersa, numa indústria tão diversificada? Reconhecer o espaço de fala de trabalhadoras e trabalhadores sexuais está ou não de acordo com um sistema ético e moral próprio da classe trabalhadora, que se contrapõe ao sexismo e ao racismo institucional que permeiam as ideologias burguesas? O trabalho sexual teria espaço para continuar a existir numa sociedade sem classes?
Intelectuais e líderes revolucionários vêm tentando responder a essas questões desde o início do movimento. Em momentos diferentes – e sob condições diferentes da luta de classes –, militantes como Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Lenin, Clara Zetkin, August Bebel, Alexandra Kollontai e outros produziram textos e declarações que muitas décadas depois continuam a ser referência para o movimento.
Mas até que ponto essas manifestações continuam a ser relevantes? O mundo mudou muito em cem anos: impérios que dominavam o planeta naquela época desapareceram e outros surgiram; a diversificação das economias e o crescimento do setor de serviços mudaram o perfil e possivelmente o papel histórico que Marx atribuía ao proletariado industrial; a mecanização da agricultura e a concentração da propriedade da terra jogaram centenas de milhões de trabalhadores rurais no desemprego e os levaram a uma vida pauperizada nas cidades. A África, que era inteiramente colonizada por europeus há cem anos, goza de independência formal, ainda que a opressão do capital persista e que um novo projeto colonial tenha surgido – o dos sionistas na Palestina.
Economistas marxistas (ou “marxianos”), como Thomas Picketty, Yanis Varoufakis, Ladislau Dowbor, Raúl Prebisch e outros vêm tentando responder a essas questões, com resultados variados. É bom lembrar que em suas origens a própria teoria política de Marx era eurocentrista: ele apostava que os países mais próximos de uma revolução eram aqueles em que a indústria de manufatura era mais forte, e onde a classe operária urbana era mais vigorosa, como Grã-Bretanha, Alemanha e França. Revoluções bem-sucedidas em países onde as grandes massas de trabalhadores eram camponesas, e não urbanas, contrariam essa tese (Rússia 1917, China 1949, Cuba 1959). Índia, a Indochina francesa, Indonésia, Malásia, Argélia, Angola, Moçambique e vários outros países africanos e asiáticos “atrasados” romperam os antigos grilhões coloniais. Enquanto isso, os trabalhadores britânicos, alemães e franceses continuam a ver navios.
O trabalho sexual, por sua vez, mudou muito nos últimos cem anos: a prostituição de rua e os bordéis e cabarés continuam a existir, mas a indústria passou a incluir uma variedade de estabelecimentos presenciais e as plataformas e redes eletrônicas. Isso foi acompanhado por uma grande diversificação (e estratificação) da categoria dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais. Sem contar uma categoria que era extremamente reduzida e “invisível” na Europa do tempo de Zetkin e Kollontai – a das pessoas trans, alvo particularmente vulnerável ao estigma e à violência, e que vem conquistando espaço nas últimas décadas.
Com muito atraso, Mundo Invisível traduz um debate publicado na revista britânica International Socialism entre 2010 e o começo de 2011. São seis artigos, cinco deles escritos por intelectuais e apenas um por um trabalhador da indústria do sexo – o líder sindical francês Thierry Schaffhauser. É bom lembrar que parte desse material já é datado – os textos foram produzidos antes da pandemia de covid-19, que teve um impacto muito grande sobre a chamada “indústria da hospitalidade”, que inclui o setor de sexo comercial. E apesar de podermos dizer que a perspectiva dos debatedores continua a ser eurocentrista, há lições que partidos e militantes revolucionários de outras regiões podem tirar dessa discussão.
E é bom lembrar que nem todas as tendências do movimento pelo socialismo estão representadas nesse debate. Um nome ausente é o de Leon Trotsky, que vale a pena citar: “Em uma época em que a reação vence, os senhores democratas, social-democratas, anarquistas e outros representantes do campo da ‘esquerda’ começam a exalar em dobro pelos poros sua moral, igual às pessoas que transpiram demais quando estão com medo. Repetindo, a seu modo, os Dez Mandamentos ou o Sermão da Montanha, esses moralistas se dirigem não tanto à reação vitoriosa, mas aos revolucionários que sofrem sua perseguição, cujos ‘excessos’ e princípios ‘amorais’ ‘provocaram’ a reação e lhe deram justificação moral. (…) Que miseráveis eunucos não nos venham dizer que o escravagista, que com mentira e a violência agrilhoa um escravo, está, diante da moral, no mesmo plano que o escravo que com a mentira e a violência quebra seus grilhões! ” (em “A Moral Deles e a Nossa”, de 1938).
As traduções de todos os artigos são de Renato Martins. A edição das notas e a pesquisa de links são de Lilian Carmona.