Combatendo o estigma

Caso da paramédica expõe um jornalismo oportunista e preconceituoso

Em artigo para o Huffington Post, a trabalhadora sexual e escritora Elle Stanger discute a conduta deplorável do New York Post ao expor uma paramédica de Nova York.

Na semana passada, o New York Post publicou uma reportagem intitulada “Paramédica de NYC ‘ajudou a pagar as contas’ com trabalho sensual paralelo no OnlyFans”. A chamada da matéria dizia: “Uma jovem paramédica de NYC diz estar tão sem dinheiro com seu emprego de baixo salário em ambulâncias que assumiu um segundo trabalho vendendo acesso online a fotos e vídeos eróticos de si mesma”.

Os dois autores, Dean Balsimini e Susan Edelmen, iniciam o artigo listando o nome completo, o local de emprego, a cidade natal, a idade, empregos anteriores e dados da educação da jovem, acompanhados de fotos.

Para contexto: a mulher, Lauren Kwei, diz que não tinha concordado com nada disso.

“Vou deixar muito claro: eu não quis que o NY Post publicasse essa matéria, e muito menos que usasse meu nome”, declara ela em uma página do GoFundMe estabelecida depois de a reportagem sair. “Quando Dean Balsamini ‘me entrevistou’ pela primeira vez, ele não disse do que se tratava até depois de eu revelar a maior parte dos meus antecedentes. Ele não incluiu na reportagem que eu comecei a chorar ao telefone quando ele finalmente me contou sobre o que ele estava perguntando.”

Os autores da reportagem incluíram uma bronca de um ex-colega de trabalho de Kwei e mantiveram a anonimidade dessa pessoa. Realmente…

É neste ponto que eu peço ao leitor que faça uma pausa e se pergunte: os autores dessa reportagem entendem que mulheres são assediadas, seguidas nas ruas e até se tornam alvos quando pessoas questionam sua moralidade sexual de uma maneira pública e humilhante?

Como a usuária do Twitter Erin Taylor apontou, a exposição de uma trabalhadora sexual a coloca em risco de “insegurança no emprego, insegurança na moradia, maior vigilância por parte de policiais/patrões abusivos/clientes, estigma violento por parte da sociedade como um todo, a perda do apoio de família e amigos e muito mais”.

Eu comecei a atuar como modelo nua na internet aos 19 anos, em 2005, e desde então trabalhei publicamente como stripper, produtora de pornô e, às vezes, acompanhante. Para mim, nunca houve dúvida, em minha mente de que eu teria uma personalidade pública; isso foi influenciado por meu privilégio pessoal e liberdade de tomar essa decisão, mas, sem dúvida, ainda enfrentei discriminação em emprego e moradia, assédio por parte de não-clientes e estranhos nas mídias sociais, discussões complicadas com familiares preocupados e uma vigilância constante e justificada com minha própria segurança. Fui seguida nas ruas várias vezes. Isso devido ao sexismo e à putafobia.

Ainda assim, escolhi viver com meu nome de trabalho, instalar barras nas janelas de minha casa, passei a ter a expectativa de mensagens ameaçadoras das pessoas antipornografia e a pagar por um sistema de segurança para minha casa. Muitas, muitas pessoas que estão tentando ganhar dinheiro com trabalho sexual não têm essas opções disponíveis para elas.

Falei com outras mulheres que tiveram experiências semelhantes à de Kwei.

“Alguém, talvez um ex, contou a pessoas no escritório onde eu trabalhava sobre minha conta no Manyvids. Ao chegar, vi o URL escrito num Post-it sobre minha mesa. O assédio cresceu e eu tive que deixar o emprego”, disse Lily, uma mulher com quem falei (Lily, e as outras mulheres com quem falei, tiveram seus nomes mudados para proteger sua privacidade).

A reportagem do NY Post não tinha nenhum objetivo senão o de gerar acessos e receita com anúncios. Não há nenhuma proposta de ação sobre por que uma trabalhadora na linha de frente da saúde não recebe um salário suficiente, durante uma pandemia, a ponto de ela ter que assumir um trabalho paralelo de maneira tão estigmatizada. Não há questionamento sobre como tornar o trabalho sexual mais seguro ou mais acessível.

Até o momento em que eu escrevo, a conta de Kwei no GoFundMe havia recebido doações 15 vezes maiores do que ela havia pedido, o que é um pequeno consolo à medida que ela tenta reconstruir sua vida e se reposicionar depois de um dos maiores tabloides do mundo encorajar todo o seu público a julgá-la e humilhá-la.

O New York Post adora formular uma manchete para excitar, revoltar, humilhar ou chocar. No mês passado, foi decisão deles usar o título “Ex-prostituta Elisa Crespo quer tornar-se a primeira vereadora trans na Câmara de NYC”, em referência à mulher do Bronx que poderia se tornar a primeira mulher transexual negra eleita naquele distrito, e que falava abertamente sobre sua experiência passada como trabalhadora sexual.

Essas manchetes são exemplos das camadas de hostilidade e discriminação que muitas pessoas marginalizadas enfrentam diariamente.

“Perdi a custódia de minhas crianças quando meu trabalho como stripper foi exposto pelo pai delas”, disse Charlotte, outra mulher com quem falei e que havia sido exposta involuntariamente. “Meus filhos nunca me viram trabalhar, eu sempre atuava em algum local, nunca os coloquei em perigo, mas o juiz disse que meu ‘estilo de vida’ não era apropriado para a idade deles. Eu era uma dançarina quando conheci o pai deles e ele sabia o que eu fazia para ganhar dinheiro. Ainda estou lutando com isso.”

É claro que sexo vende, e enquanto todos nós temos que ganhar dinheiro por vivermos num mundo capitalista, se o New York Post quer faturar com a publicação de histórias picantes, que peça a nós, trabalhadoras sexuais, que as contemos nós mesmas. Sabemos como navegar por coisas como familiares e amigos hostis, vídeos e fotos roubados, a polícia, lidar com perseguidores e com a discriminação no acesso a moradia. Não precisamos de ninguém que ponha mais de nós em perigo a pretexto de uma história picante.

Lauren está atravessando uma coisa que pouquíssimas pessoas serão capazes de entender; e felizmente ela conseguiu juntar um colchão de dinheiro para ajudá-la a construir uma vida nova, e recebeu comentários de apoio de estranhos. Isso é algo que a vasta maioria das pessoas que foram expostas nunca vão ganhar.

Kwei recebeu apoio até da deputada federal Alexandria Ocasio-Cortez (Democrata-NY), que tuitou um lembrete para que o foco e a humilhação sejam dirigidos a um governo federal que está desiludindo as pessoas que tentam simplesmente sobreviver a uma pandemia com pouco alívio ou apoio financeiro.

Em sua página no GoFundMe, Kwei dá a palavra final em um apelo apaixonado por apoio aos trabalhadores de linha de frente na área de saúde.

“O NY Post me deu uma voz. Portanto, aqui estou eu, me expondo para o mundo. Estou aqui para dizer que todos os meus irmãos e irmãs nos primeiros socorros estão sofrendo. Precisamos da sua ajuda”, escreveu ela em uma atualização da página.

“Temos estado exaustos há meses, reutilizando equipamentos pessoais de proteção por meses. Vendo recusadas nossas demandas de pagamento extra por trabalho insalubre e vendo nossos companheiros na área de saúde morrerem diante de nossos olhos em nossas ambulâncias. Pelo menos três técnicos em emergências médicas [EMTs] de Nova York se suicidaram neste ano, e tem havido muito poucas medidas de acesso a cuidados de saúde mental para os trabalhadores de primeiros socorros. Os EMTs são os trabalhadores de linha de frente mais mal pagos em Nova York, o que leva a jornadas semanais de 50 horas ou mais e, às vezes, a termos até três empregos. Meus irmãos e irmãs MERECEM MUDANÇAS!”

17 de dezembro foi o Dia Internacional Pelo Fim da Violência Contra Trabalhadoras Sexuais. E a redução do dano contra as pessoas que atuam em setores relacionados ao sexo começa pelo respeito à privacidade e ao consentimento das trabalhadoras; não incitar as pessoas a denegrir ou a prejudicar trabalhadoras sexuais. Não há como as sobreviventes de exploração sexual buscarem justiça e apoio da comunidade se alguns insistem em humilhar ou criminalizar o trabalho sexual consensual, o que também cria mais vítimas potenciais. Além disso, se alguém trabalha com entretenimento para adultos, isso não quer dizer nada no que diz respeito a suas outras capacidades e habilidades.

Como Kwei escreveu em um artigo para o The Independent [publicado nesta quinta-feira]: “A maneira como eu ganho meu dinheiro para ajudar aqueles que precisam não é da conta de ninguém senão de mim mesma, e nenhum paciente já me perguntou se eu estou no OnlyFans antes de permitir que eu cuidasse dele”.


Sobre a autora: Elle Stanger é stripper, escritora, educadora sexual diplomada e produtora do podcast Strange Bedfellows. Ela está no Instagram como @stripperwriter.