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“As pessoas não param para pensar que ela está ali porque precisa de dinheiro”

Amara Moira, editora de E Se Eu Fosse Puta – Amara da Depressão, entrevista Bárbara Aires. As fotos são do Nlucon.

Três meses de página e chegamos ao fim do ano em grande estilo: Amara Moira entrevista Babi Aires, prostituta, ex-produtora do “Amor e Sexo” da Rede Globo. Prostituição e empregabilidade de travestis e transexuais, possibilidades de moradia, diferença entre trabalhar na rua e por site, centro de SP versus Lapa e Barra da Tijuca, como é fazer filmes, abuso policial, violência sofrida no exercício da profissão… temas quentes, todos eles enfrentados sem rodeios pela nossa convidada da vez! Uma palhinha dela, falando sobre a questão de ter sido prostituta, aí entra pra Rede Globo e depois, demitida, volta a ser só prostituta.

Amara Moira: A gente podia começar falando sobre isso, a escolha, o poder escolher a própria profissão, a relação disso com a prostituição… Qual é seu ponto de vista a esse respeito?

Bárbara Aires: Olha, para as pessoas trans no geral, eu acho maravilhoso e é uma realidade que a gente não conhece. São pouquíssimas, digo até raras, as pessoas que puderam escolher a profissão que queriam. Na maioria das vezes, principalmente quando você fala de transexualidade feminina, elas estão automaticamente estigmatizadas com a prostituição. E aí a prostituição, que é uma profissão digna e tem todas as suas questões, fica uma coisa de imposição, não é uma escolha, não fica uma profissão de “ah, eu vou trabalhar com sexo porque eu quero”. Então, é algo a se pensar, as pessoas trans em geral não escolhem a profissão pela profissão.

Amara: E aí, fico pensando, você tem uma trajetória em que você trabalhou com prostituição, aí de repente você é contratada pela Rede Globo, onde você fica dois anos como produtora do “Amor e Sexo” da Fernanda Lima, e aí você de repente sai do programa, no final do ano passado. e volta agora pra prostituição. Como é esse retorno?

Bárbara: Péssimo. Costumo dizer “antes eu não tivesse sido contratada”, porque eu tinha toda uma expectativa, eu tinha toda uma programação de futuro na minha cabeça. Porque, como qualquer outra pessoa profissional, a pessoa trans também vislumbra uma carreira, eu também quero ter um emprego, que eu comece de baixo, vá crescendo, vá crescendo, vá crescendo e vire uma puta duma profissional, né? E eu esperava isso lá, eu contando com isso… porque eu já tinha passado da fase de experiência, já estava mostrando serviço, mostrando trabalho – eu acho que se eu fiquei contratada dois anos, não é porque eu era uma má profissional. E aí, para mim que não gosto da prostituição, de ter que ir para a rua etc., para mim foi muito complicado. Demorei para assimilar essa coisa de “não trabalho mais”, passei por alguns momentos bem complicados, tipo, uma semana para pagar o aluguel e não tem um real, e aí você tem que ir, você tem pouco tempo para fazer esse dinheiro. E as pessoas não param para pensar que as pessoas trans – no caso, não posso falar as pessoas, porque no caso dos homens trans a prostituição não é uma realidade, pelo menos não a maioria… enfim –, mas para as travestis e transexuais, as pessoas não param para pensar que ela está ali porque precisa de dinheiro, porque a prostituição é isso, dinheiro rápido.

Amara: Você disse que não gosta de se prostituir, mas acaba sendo compelida, obrigada. Eu fico pensando, então, como é, como foi, como tem sido a sua relação com clientes? A dificuldade, o que você não gosta na profissão, está ligada a quê?

Bárbara: Olha, é até complicado. Nem poderia estar falando sobre isso, que, como eu vivo de prostituição, é meio que tipo dizer “não saiam comigo”. É complicado porque enquanto mulher transexual, eu estou dentro da caixinha, fui criada para isso: certo ou errado, não sei, mas essa é a minha realidade, esta é a Bárbara, estou falando por mim. Eu não gosto de ser tocada no pênis, não gosto de sexo oral e eu não gosto quando o homem olha pra mim e aí ele faz… e aí ele olha assim um pouco não sei o quê, aí ele olha pro pênis e “ai, nossa, você é linda”. Mas ele não tá olhando pra minha cara, tá olhando pro pênis… ele não se preocupou em pegar no meu peito, ele não olhou minha bunda, ele não reparou no meu cabelo, aí a primeira coisa que ele vê, que ele foi, é o pênis, aí ele está lá no meu pênis, não sei o quê, aí do nada ele olha pra mim e “ai, você é muito gostosa”. Não, não sou eu, e isso me incomoda muito. Mas eu sou profissional, eu preciso trabalhar, preciso pagar minhas contas como qualquer outra pessoa, então eu lido com isso da melhor maneira possível, né? Eu tenho os meus limites enquanto profissional do sexo, mas vou, tenho essa questão de ser uma boa profissional. Trabalho com sexo? Trabalho com sexo. Então vamos lá. Porque eu acho importante que, em qualquer área que você esteja, você tenha responsabilidades, seja profissional, isso eu acho super importante.

Amara: Pouca gente trabalha realmente com o que gosta, né?

Bárbara: Nem todo gari gosta de ser gari. Quem trabalha com o que gosta é porque escolheu, foi lá, fez uma faculdade, tem uma profissão e trabalha naquela profissão que ela fez a faculdade. Agora, o balconista do bar gosta de ser balconista? O chapeiro da padaria gosta de ser chapeiro? Então, é uma coisa que eu acho que a gente tem que parar pra pensar. Eu acho até que a questão da prostituição e da empregabilidade das pessoas trans traz à tona uma realidade brasileira muito além disso, a questão de “a maioria das pessoas não trabalha com o que gosta”, independentemente de ser trans, de ser cis, homem ou mulher.

Amara: Você falou um pouco sobre a questão da empregabilidade, mas a empregabilidade não é o único problema que travestis e transexuais enfrentam. Fico pensando, por exemplo, na questão de aluguel de uma casa, relação com moradia: como é isso para você?

Bárbara: Acho que não só para mim como para a grande maioria, a realidade das travestis e das mulheres trans já foi mais do que super explorada quanto a isso, porque você põe no YouTube, procura nos canais de TV, o que você mais vê são as travestis e mulheres transexuais morando amontoadas na casa de uma travesti ou transexual mais velha, que já conseguiu dinheiro, comprou e aí aluga vagas, o que a gente chama de casas de cafetina, pensionato, enfim. Quando não é assim, você mora numa casa que é alugada por temporada, com um aluguel super inflacionado, porque você vai na imobiliária – você pode estar o mais bem vestida que for, você pode ter o extrato bancário que for, você é muito bem tratada até a hora que vêem o seu RG: na hora que você apresenta um documento em que seu nome é masculino e você está ali com uma imagem feminina, acabou, já tem outra ficha na sua frente, “a gente volta a entrar em contato caso seja aprovado…” Porque tem todo um estigma atrás da pessoa trans, ai, ih, é travesti, vai fazer bagunça, vai dar festa todo dia, vai beber, vai se drogar, vai fazer prostituição, vai fazer programa aqui dentro, não, não quero. As pessoas não param pra pensar que tem travestis e transexuais que são cabeleireiras, maquiadoras, vendedoras, advogadas, médicas, e que precisam de um lugar pra morar, que não se drogam e que não bebem, enfim, e que vão pagar o aluguel como qualquer outra pessoa. Essas questões todas eu acho que nem deveriam ser questionadas, porque a partir do momento que você está pagando o aluguel, a casa é sua: só não tem que destruir a casa, e se destruir que você devolva no estado em que você pegou. As outras questões são de foro íntimo.

Amara: Você já trabalhou em vários lugares. Estamos aqui em São Paulo agora, gostaria de saber se você pode fazer um panorama de como é trabalhar aqui no centro de São Paulo, principalmente na rua, e trabalhar lá na Lapa, na Barra da Tijuca, dois lugares no Rio onde você trabalhou.

Bárbara: A maior diferença entre São Paulo e Rio é valor, quando você fala de centro de São Paulo versus Barra da Tijuca. Centro de São Paulo a gente sabe que é um bairro em decadência e Barra da Tijuca é uma área nobre lá do Rio de Janeiro, então a diferença é muito grande – em termos falados, é o dobro, em termos reais, lá ganha mais do que aqui. E tem também a questão da degradação, a questão de estar no centro de São Paulo, drogas, bebida, marginalidade, tudo isso. Lá na Barra da Tijuca é mais elitizado, em todas as questões que você parar pra analisar, tanto financeira quanto de clientes. Agora, centro de São Paulo versus Lapa eu acho muito parecido, tanto de valores quanto de clientes, quanto de marginalidade… são realidades bem parecidas.

Amara: E a relação com a polícia, estando na rua?

Bárbara: Olha, quando eu comecei, dez anos atrás, ainda peguei um pouco de ter que correr da polícia, de a polícia bater na gente com cassetete, não querer deixar ficar ali. Hoje em dia a gente vive uma outra realidade, a polícia passa e dá boa noite, pelo menos no Rio de Janeiro: passa, dá boa noite, cumprimenta, vê se está tudo bem, a gente vive uma realidade muito grande de respeito a nome social, identidade de gênero, uma outra realidade enquanto tratamento. Mas em contrapartida a gente também tem as questões de abuso de poder quando é uma menina trans que está sendo presa porque cometeu um ato infracional, a gente tem a questão da corrupção, de suborno. Melhorou, mas é óbvio que não é ainda 100%, e óbvio que assim como tem o policial que é racista e acaba agredindo um negro porque ele é suspeito, tem o policial que é transfóbico e agride uma transexual porque ele acha que ela é marginal – isso ainda existe, mas não é como era antigamente.

Amara: E você já trabalhou também por sites. Qual a vantagem e desvantagem de trabalhar por sites?

Bárbara: Olha, a única desvantagem que eu vejo em site é, dependendo da pessoa, a questão da exposição, de resto só vejo vantagem. O programa é mais caro, tem que ter o privê pra receber (porque você ganha muito mais – se você só atende em motéis e hotéis ou local do cliente, você vai ter menos clientes). Mas assim, o valor é muito maior e o cliente já está vendo ali o “produto” (abro aspas porque tem muita gente que não gosta, mas eu lido muito bem com essa questão de ser um produto, em oferta, e estar prestando um serviço, isso pra mim não é um problema). Ele já está vendo e escolhe, te liga, combina, eu acho muito mais tranquilo. O meu problema, inclusive, até acho importante deixar isso claro, porque as pessoas confundem um pouco, saíram até umas matérias falando “transexual vira produtora da Globo e deixa as ruas”, e muita gente traduziu o “deixa as ruas” como “deixa a prostituição”: em momento nenhum da minha empregabilidade eu disse que deixei a prostituição. Obviamente, eu não saí explanando porque estava representando uma empresa, então você não tem que sair por aí dizendo assim “Olha, eu estou me prostituindo, por favor me liguem, me procurem”. Não. Mas óbvio que eu tinha clientes que tinham meu telefone e que me ligavam e eu atendia, até porque eu entrei na Globo ganhando um salário de mil reais e todo mundo que mora no Rio de Janeiro sabe a realidade do Rio de Janeiro, e com mil reais você não sobrevive. Naquela época você ainda sobrevivia em alguns lugares, hoje em dia com mil reais você não sobrevive nem na comunidade. Então, assim, deixar bem claro que eu nunca larguei a prostituição, esse momento ainda não chegou. Quando chegar, eu vou deixar claro: larguei a prostituição. O que a Globo me possibilitou foi a saída das ruas, eu não gosto de ir para a rua, me incomoda muito essa coisa de ter que ir para a rua, de estar ali em pé, exposta, sendo escolhida, e ver outras trabalhando e você fica lá, essa coisa da competição que a rua cria internamente, acho isso muito complicado.

Amara: E a negociação com o cliente, na rua e no telefone, por exemplo?

Bárbara: É igual. Porque os interesses deles são os mesmos, valor, o que você faz e quanto tempo você fica. Então isso não muda muito, não. Depende aí das suas limitações pessoais, do que você faz, do que não faz.

Amara: Você teve uma carreira – não sei se ainda tem na verdade – com filmes, você fez vários filmes. Você prefere fazer filmes a trabalhar como prostituta? Você vê isso como prostituição, o que é pra você fazer filmes?

Bárbara: Não, o fazer filmes é para mim um mercado do sexo, obviamente, e é uma atriz, ponto. Porque você não está ali fazendo uma coisa que você faria se não tivesse levando, então é um trabalho e é uma atriz, você está atuando. De repente, aquele ator que está ali comigo, eu nem transasse com ele se eu o conhecesse, por livre e espontânea vontade. Eu vejo como normal, tranquilo, não entendo o tabu que tem. É um mercado que ganha muito dinheiro no Brasil (isso as pessoas não assumem), e eu acho que isso tem que ser melhor trabalhado, acho que isso o Brasil tem que copiar dos Estados Unidos, os Estados Unidos têm prêmio da indústria pornô. Não vejo problema quanto a isso, seria sem problema nenhum atriz pornô, de carreira, de ganhar bem. O problema do Brasil para mim é o ganho: se ganha muito pouco, as pessoas têm uma noção totalmente equivocada da realidade da indústria pornô no Brasil. Existem pessoas fazendo filmes pornô por 150 reais, como assim? E você não tem mais, depois, controle sobre vendas, sobre quem assiste, como é veiculado – você ganha pela cena, pronto e acabou, você não ganha mais nada pelo filme. Então isso é muito complicado, a problemática para mim é essa. Quanto a fazer, não vejo problema. E se eu pudesse escolher eu faria, no caso de não ter uma outra opção, eu faria um filme pornô e faria também um atendimento em casa, mas com as limitações que eu gostaria enquanto profissional do sexo, se eu pudesse. Dentro dessa realidade, isso seria como eu trabalharia, se isso fosse possível.

Amara: Você acredita que tem mais problemas com violência na prostituição ou como atriz?

Bárbara: Ah, na prostituição, com certeza, prostituição. Porque na prostituição você tem um cliente que está bêbado e às vezes você não quer fazer uma coisa e ele não entende, aí ele começa a gritar, quer te agredir. Você tem as pessoas que passam e te desrespeitam… Por exemplo recentemente, eu estava parada em pé na Barra da Tijuca, um carro com três mulheres cisgênero (pra quem não conhece o termo são mulheres que nasceram com vagina), pararam o carro do meu lado e começaram a perguntar: “E aí, tem peru?, pô, tem peru?, a gente quer peru, tem peru pra gente não?, pô, você não é travesti?, que você tá fazendo aqui?, seu trabalho não é dar o peru? Então, aqui tem três mulher, a gente tá querendo peru… porra, você vai deixar a gente no vácuo?, não vai falar com a gente não?” Infelizmente eu estava sozinha na rua nessa hora, e aí vou fazer o quê?, não podia nem responder – elas estavam em três, se elas descessem e resolvessem brigar comigo, eu ainda saía perdendo, porque, por mais que fossem mulheres, estavam em três. Sozinha você não briga com três pessoas. E foi para mim muito constrangedor, foi muito agressivo e desnecessário. Eu estava em pé, esperando um cliente parar: qual a necessidade que essas mulheres tinham de parar o carro e ficar me agredindo psicologicamente com isso? Porque as pessoas não param para pensar que isso é uma agressão psicológica. Assim como os retardados que passam e “tem jogo amanhã”, “e aí João?”, “ô pirocudo”, “ô sei lá o quê”, sabe? E essas violências a gente sofre elas todos os dias, que não é só a violência de tomar um tiro, de tomar uma facada, de tomar pedrada, de ser agredida fisicamente, o que graças a deus eu nunca passei gravemente – eu já tomei um tapa na cara de uma outra travesti no começo, tive um cliente que não quis pagar e ficou correndo com o carro ameaçando bater, foram leves perto do que eu já presenciei, por exemplo tiro do meu lado, garrafada do meu lado, essas coisas eu já presenciei, mas graças a deus nunca vivenciei.

Amara: A gente abordou bastante coisa aqui, é incrível o jeito como você responde, a propriedade com que você responde.

Bárbara: Eu tenho um problema que preciso trabalhar, meu ex-namorado diz que eu falo muito rebuscado. E às vezes eu fico buscando essas palavras que eu sei delas, aí eu quero usar, e não quero usar o sinônimo que é mais popular, e aí às vezes dá uns enroscos, desculpa aê qualquer coisa.

Amara: Fabuloso! Então abro para considerações finais, se quiser falar alguma coisa a mais sobre você, sobre planos, do futuro, como é que você está trabalhando a questão do emprego agora, você está buscando outras opções?

Bárbara: Eu enviei centenas de currículos para centenas de pessoas que conheço que trabalham com RH, enviei para empresas, enviei para agências, fui em lojas de shopping… o que eu podia fazer de procurar, eu procurei, estou cadastrada na Secretaria do Trabalho, obviamente, por causa do seguro-desemprego. Por enquanto meus planos são continuar me prostituindo até que apareça uma nova opção. Óbvio que eu não estou sentada, parada em casa olhando pro teto, existem alguns projetos que eu não estou explanando porque… sinergia – deixa acontecer, as pessoas vão ver, pronto. Mas por enquanto é isso, estamos aí na batalha, conheci recentemente no Encontro Sudeste de Travestis e Transexuais a Márcia Rocha, do Transempregos, e ela também está vendo essa questão pra mim, pra me ajudar. A única coisa que eu acho importante deixar claro é que as pessoas têm que entender que transexualidade não tem nada a ver com capacidade profissional, capacidade profissional e qualificação não estão atreladas a sexualidade, e as pessoas têm que parar com essa mania de atrelar pinto homem, buceta mulher.