Entrevistas

Angela Davis fala em defesa dos movimentos de trabalhadoras sexuais

A entrevista de Angela Davis que agora publicamos pode parecer distante da realidade brasileira, mas não está. Mesmo a proposta de criminalização dos clientes das prostitutas inspirada pelo “modelo sueco” terá como consequência o que Angela Davis aponta aqui: o encarceramento cada vez maior de mulheres, principalmente as mulheres negras e pobres, cuja população crescerá no complexo prisional, porque essas mulheres serão empurradas para a clandestinidade, devido à perseguição policial, ou para a criminalidade, devido à impossibilidade de conseguir alternativas de sustento fora da prostituição. Isso é algo que já está acontecendo na Suécia, como ativistas ligadas às trabalhadoras sexuais têm denunciado. Diversas ações policiais de “limpeza” têm ocorrido no Brasil em bordéis e casas de prostituição, o que tem levado à prisão abusiva de trabalhadoras sexuais. Por isso, os alertas de Angela Davis apontam problemas e riscos que envolvem as trabalhadoras sexuais brasileiras.

Angela Y. Davis foi professora de História da Consciência na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz. Em 1994, foi nomeada para uma Presidential Chair da UC em Estudos Afro-americanos e Feministas. É autora de numerosos artigos e ensaios e de cinco livros, incluindo Women, Race, and Class. Seu último volume, Blues Legacies and Black Feminism, enfoca a consciência feminista emergente no trabalho das primeiras mulheres do blues. Em 1972, foi absolvida de falsas acusações de assassinato, sequestro e conspiração, e emergiu como estudiosa e militante pelos direitos humanos. Nesta entrevista ela compartilha sua experiência na prisão com profissionais do sexo e seus pontos de vista sobre o feminismo e ativismo entre os jovens.

Siobhan Brooks era sindicalista no Lusty Lady Theater, que se sindicalizou com a SEIU [Service Employees International Union], Local 790 . Ela é Ph.D. em Sociologia pela New School for Social Research e membro do conselho da EDA [Exotic Dancer’s Alliance]. Seus escritos têm sido publicados na Z Magazine (Janeiro 1997), Whores and Other Feminists (editado por Jill Nagle. Routledge, 1997), Sex and the Single Girl (editado por Lee Damsky. Seal Press, 2000), e Feminism and Anti-Racism (co-editado por France Winddance Twine e Kathleen Blee. NYU Press, 2001).

Esta entrevista com Angela Davis foi originalmente publicada no Hastings Women’s Law Journal, Vol. 10, no. 1, 1999, e é parte do livro Dancing Shadows: Interviews with Men and Women Sex Workers of Color, em preparação.

Siobhan Brooks: Como foi sua experiência com profissionais do sexo durante o seu encarceramento? Como é que você as viu sendo tratadas?

Angela Davis: Uma das coisas que eu lembro muito claramente sobre a minha prisão em Nova York, 27 anos atrás, é que profissionais do sexo continuamente eram presas em grande número. Durante as minhas seis semanas na Casa de Detenção para Mulheres de Nova York, fiquei impressionada com o fato de que os juízes eram muito mais propensos a liberar prostitutas brancas por fiança do que as prostitutas negras ou porto-riquenhas. Quase noventa por cento das encarceradas nesta prisão – algumas das quais estavam à espera de julgamento, como eu, e outras das quais estavam cumprindo sentenças – eram mulheres negras. As mulheres falavam muito sobre as várias maneiras como o racismo se manifestava no sistema de justiça criminal. Elas conversavam sobre a maneira como a raça determinava quem ia para a cadeia e quem ficava na cadeia e com quem isso não acontecia. Durante o pouco tempo em que eu fiquei lá, eu vi um número significativo de mulheres brancas entrar sob a acusação de prostituição. Na maioria das vezes elas eram liberadas em questão de horas.

Por causa dos problemas que muitas mulheres enfrentavam na tentativa de levantar a fiança, decidimos trabalhar com as mulheres no “mundo livre” que estavam organizando um fundo de resgate para mulheres. As mulheres do lado de fora estabeleceram a estrutura e levantaram o dinheiro e nós organizamos as mulheres do lado de dentro. Aquelas que aderiram à campanha concordaram em continuar a trabalhar com o fundo de resgate do lado de fora uma vez que sua fiança fosse paga por fundos levantados pela organização. Um grande número de profissionais do sexo envolveu-se nessa campanha.

SB: Que tipo de abuso que você testemunhou para com as trabalhadoras sexuais negras?

AD: Eu não me lembro de profissionais do sexo terem sido tratadas como um grupo discriminado, mas testemunhei uma grande quantidade de abuso verbal dirigido para todas as prisioneiras mulheres. Presos, particularmente as mulheres presas, eram e ainda são tratados como se não tivessem direitos. Elas são infantilizadas – por exemplo, são chamadas de “meninas”. Não só na minha experiência pessoal como prisioneira, mas também no trabalho que tenho feito como professora na cadeia de San Francisco County – onde Rhodessa Jones produz apresentações teatrais colaborativas –, eu tenho testemunhado uma grande quantidade de abuso verbal direcionado para as mulheres prisioneiras. Muitas vezes, os guardas e outros funcionários da prisão não têm conhecimento nenhum de que estão inferiorizando os prisioneiros.

SB: Em um de seus ensaios de Women, Race, & Class, você mencionou prostitutas que tentaram formar uma união no início do século. Eu sei que você é solidária com as trabalhadoras sexuais que tentam organizar seu ambiente de trabalho. Eu queria ouvir, em suas próprias palavras, como é a sua visão global sobre a indústria do sexo?

AD : Eu posso começar dizendo que acho que a indústria do sexo deveria ser descriminalizada. Em países como a Holanda, onde a indústria do sexo tem sido descriminalizada, há, como resultado, menos pressões sobre o sistema de justiça criminal, em relação ao que envolve as mulheres. A criminalização contínua da indústria do sexo é, em parte, responsável pelos números crescentes de mulheres que vão para cadeias e prisões. Este fenômeno de expansão exponencial das populações encarceradas é uma parte do complexo prisional industrial emergente. Não apenas as populações de cadeias e prisões estão crescendo em um ritmo incrível, corporações capitalistas agora têm uma participação maior na indústria de punição. Mais prisões estão sendo construídas, mais empresas estão usando trabalho prisional, mais prisões são privatizadas. Ao mesmo tempo, mais mulheres estão indo para a prisão, mais espaços estão sendo criados para as mulheres e, como resultado, cada vez um maior número de mulheres irá para a prisão no futuro.

Na minha opinião, a criminalização contínua da prostituição e da indústria do sexo em geral contribuirão para o desenvolvimento deste complexo prisional industrial. O desmantelamento do sistema de bem-estar sob a chamada lei de reforma do bem-estar provavelmente levará a uma expansão maior da indústria do sexo , bem como da economia subterrânea da droga. A criminalização da indústria do sexo, portanto, ajudará a atrair mais e mais mulheres para o complexo industrial prisional. Há uma dimensão racista neste processo, uma vez que um número desproporcional dessas mulheres serão mulheres negras.

SB : Você acha que no futuro próximo a prostituição será descriminalizada aqui?

AD: Isso é algo pelo qual temos que lutar. Na era do HIV e da AIDS , não faz sentido continuar a construir as circunstâncias sociais que cada vez mais colocam as mulheres em risco. O trabalho que o C.O.Y.O.T.E. tem feito ao longo dos anos tem sido extremamente importante. A este respeito, Margo St. James é uma pioneira. Eu li sobre o trabalho que você tem feito no Lusty Lady em conjunto com a SEIU, Local 790. Felizmente, o trabalho que você está fazendo se tornará uma tendência estadual e nacional. Certamente, se sindicatos como o seu continuarem a se organizar e se o movimento das mulheres e outros movimentos progressistas se ocuparem da demanda por descriminalização, haverá alguma esperança.

SB: Você se lembra de que tipo de discussão acontecia no movimento feminista na década de 70 em relação a profissionais do sexo?

AD: Durante o primeiro período do movimento de libertação das mulheres, os problemas mais dramáticos foram a violência sexual e direitos reprodutivos – em outras palavras, estupro e aborto. As questões relacionadas com a indústria do sexo foram levantadas no contexto das discussões em torno da violência sexual. Por exemplo, houve o debate em Minneapolis sobre a lei que proíbe a pornografia, que tendia a dividir muitas feministas em campos opostos a favor e contra a pornografia.

Essa polarização foi um desenvolvimento bastante infeliz. Mas, ao mesmo tempo, esses debates levaram a questões muito interessantes sobre o que é pornografia, o que abriu novas formas de pensar e falar sobre sexo e práticas eróticas. A definição de pornografia como agressiva, objetificante e violadora da autonomia e da autodeterminação das mulheres era estrategicamente importante, pois permitiu uma distinção entre o que era explorador e violador por um lado, e o que era uma expressão da agência das mulheres, de outro. Essas discussões fizeram o trabalho de base para mover discurso feminista sobre a indústria do sexo para fora do quadro polêmico da moralidade.

SB: Como você acha que os seus próprios pontos de vista feministas mudaram ao longo dos anos?

AD: Eu acho que eles mudaram muito. Por um lado, eu realmente não me considerava uma “feminista” durante os anos sessenta e setenta, mesmo que eu estivesse muito envolvida no trabalho em torno das questões das mulheres. Com o surgimento do movimento de libertação das mulheres durante os anos sessenta , muitas mulheres negras, inclusive eu, tendíamos a nos distanciar das brancas feministas de classe média. Muitas de nós nos sentimos como se estivéssemos sendo convidadas a escolher entre raça ou sexo e queríamos abordar os dois ao mesmo tempo. Nós nos sentíamos marginalizadas em nossos movimentos para a igualdade racial e também marginalizadas nos movimentos em prol da igualdade de gênero. Se os movimentos feministas de classe média branca tendem a ser racistas, muitos esforços antirracistas tendem a ser machistas.

Cheguei à conclusão de que o feminismo não é um movimento ou uma maneira de pensar monolítica. Existem diferentes feminismos e cabe às mulheres e aos homens que se dizem feministas esclarecer a política de suas formas particulares do feminismo. Eu escolho definir o feminismo dentro de um quadro de políticas radicais e socialistas que associam lutas contra a dominação masculina com práticas antirracistas, anti-homofóbicas. Isto significa que podemos também pensar sobre o nosso passado de maneiras diferentes.

Quando escrevi o livro Women, Race & Class, eu não me considerava uma feminista. Mas agora eu percebo que neste livro eu estava tentando explorar tradições históricas feministas negras marginalizadas. Meu último livro, Blues Legacies and Black Feminism, continua essa busca de tradições feministas da classe trabalhadora no trabalho de mulheres negras cantores de blues. Quando eu olhei para Gertrude “Ma” Rainey , Bessie Smith e Billie Holiday, descobri que um dos temas feministas mais importantes de seu trabalho era a sexualidade. Canções de blues – bem como a transformação por Billie Holiday de músicas populares usando blues e jazz – evocam sexo de maneiras muito interessantes e muitas vezes usam metáforas sexuais explícitas. As pessoas negras de classe média muitas vezes têm historicamente se dissociado do blues precisamente por causa da forma como lida com o sexo.

Em Blues Legacies, concluo que a sexualidade foi especialmente importante para as pessoas negras que tinha acabado de sair da experiência da escravidão. No rescaldo da escravidão, os negros libertos não eram realmente livres. Mesmo que a escravidão tivesse sido abolida, não havia liberdade econômica e não havia liberdade política. Mas os negros podiam exercer a agência e a autonomia em assuntos sexuais. Eles podiam tomar suas próprias decisões em relação a parceiros sexuais. Eles podiam fazer sexo com base em seu próprio desejo – e não de acordo com a necessidade dos senhores de escravos de reproduzir a população escrava. Esta foi uma das expressões mais tangíveis de liberdade para um povo que ainda não estava livre. No meu livro eu li canções blues de mulheres de uma forma que me permite associar a sexualidade com a libertação.

SB: Isso é um grande projeto, porque de modo geral o feminismo negro não é reconhecido da forma como deveria ser. Como você vê o ativismo político e o feminismo entre jovens?

AD: Eu não penso, como muitas pessoas da minha geração, que os jovens de hoje são politicamente apáticos. Os jovens estão muito envolvidos com um ativismo de base importante. Eles estão envolvidos em campanhas sérias contra o desmantelamento das ações afirmativas, eles estão desafiando o complexo industrial prisional, eles estão envolvidos com movimentos associados à Aids e estão fazendo um trabalho de organização inovador, como o seu trabalho como sindicalista na indústria do sexo. O principal problema, creio eu, é a falta de visibilidade do trabalho e a falta de redes nacionais. Como resultado, muitas pessoas assumem que o trabalho não está sendo feito.

Eu tento alertar contra as comparações entre os jovens de hoje e os seus movimentos ancestrais, por assim dizer, e contra a nostalgia que define os anos sessenta como a era revolucionária e os anos noventa como uma era de passividade política. As circunstâncias que enfrentamos hoje são muito mais complicadas do que eram há trinta anos. Eu realmente não invejo o jovem ativista que hoje não pode se concentrar em uma questão da maneira como o ativismo nos anos sessenta se concentrava na raça, no sexo ou na classe. Os jovens de hoje têm que aprender a associar todas essas coisas em tensão e a reconhecer suas interseccionalidades.

Durante os anos 1960, se você se tornava uma ativista antirracista, tudo o que tinha a fazer era descobrir como desafiar o racismo. Você sabia quem era o inimigo. Agora, é claro, nos damos conta de que o inimigo não é tão claro. Desde que aprendemos a politizar a violência doméstica, podemos dizer que o ativista do sexo masculino que agride sua parceira está simultaneamente em ambos os lados das linhas de batalha. Estas são algumas das relações complicadas que jovens devem entender hoje. Respeito muito o trabalho de jovens ativistas e tento incentivar que procurem modelos entre si ao invés de assumir que possam encontrá-los no passado.

Costumo dizer que respeitar os mais velhos é bom, mas você tem que combinar a quantidade certa de respeito com algumas doses de desrespeito, a fim de livrar -se do passado histórico. Uma parte importante do trabalho de criação de novas formas de luta reside em desafiar as formas anteriores. As pessoas da minha geração desafiaram os anciãos – os Martin Luther Kings, por exemplo – a fim de conquistar novos caminhos. Isso, eu acho, é o que deve acontecer hoje.

SB: Como você imaginava o futuro político dos anos 80 e 90 depois que saiu da prisão?

AD: Houve uma grande repressão na década de 1970, quando eu fui para a cadeia e, quando presos políticos do Partido dos Panteras Negras e de outras organizações abundavam nas cadeias e prisões. O FBI e a polícia local tentaram acabar com organizações como o BPP. Os alunos foram alvos de repressão – em Kent State, por exemplo. Os anos 1970 foram um período durante o qual o estado estava determinado a acabar com a resistência radical. E tiveram sucesso até um certo ponto. Mas, por outro lado, havia aqueles que continuaram a fazer o trabalho. Mesmo durante a era Reagan, havia exposições importantes e maciças de resistência política.

Talvez o presente seja sempre o mais difícil de entender, mas parece que este é o momento mais difícil de todos. Agora que um número crescente de mulheres e pessoas negras estão em posições de poder, temos que reconhecer que já não podemos assumir que as pessoas negras ou latinas ou mulheres de qualquer origem étnica serão progressistas em virtude da sua raça ou sexo. Muitas, como Clarence Thomas e Ward Connerly aqui na Califórnia, tornaram-se porta-vozes para as posições mais atrasadas e conservadoras politicamente.

Isto significa que precisamos pensar de forma diferente sobre as nossas estratégias políticas. Não podemos nos esforçar para conseguir o tipo de unidade no qual as pessoas tendiam a confiar no passado. Temos que prescindir de velhas ideias sobre a unidade negra ou unidade das mulheres. O tipo de unidade de que nós precisamos, eu acho, é a unidade forjada em torno de projetos políticos em oposição à unidade simplista baseada na raça ou sexo. Minha própria esperança para o futuro não é uma esperança abstrata, mas se baseia na noção de que temos de confrontar as tarefas diante de nós. Se não fizermos este trabalho, vamos enfrentar um futuro muito mais horrendo e muito mais perigoso do que o presente.

SB: Este é um futuro muito assustador. Acho que o mais interessante sobre o que algumas pessoas estão chamando de movimento das trabalhadoras sexuais, para mim, é que ele engloba grupos de pessoas de diferentes raças, classes e sexos. Acho que é um bom plano de como podemos nos aliar com diferentes ativistas de esquerda e criar algo mais amplo.

Clique aqui para ler a entrevista no original.


Angela Davis se tornou uma das líderes do feminismo radical e do feminismo negro nos Estados Unidos a partir dos anos 1960. É também uma das fundadoras do Critical Resistance, movimento político contra o complexo industrial prisional. Escritora, ex-professora de História da Consciência na Universidade da Califórnia, Angela Davis é lésbica e vegana.