“Tudo foi errado, a gente só quer trabalhar, mais nada”
De Soraya Simões e Laura Rebecca Murray, do Observatório da Prostituição e Davida
Prostitutas de Niterói participaram no dia 4 de audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), para que pudessem ser melhor esclarecidos os abusos e violações ocorridos durante ação da Polícia Civil no prédio onde trabalham, na Avenida Amaral Peixoto 327, no dia 23 de maio. Presidida pela deputada Inês Pandeló, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, e pelo deputado Marcelo Freixo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, a audiência reuniu prostitutas, ativistas de direitos humanos e dos direitos das prostitutas (Davida, ABIA e Observatório da Prostituição/UFRJ), membros da OAB, vereadores de Niterói, assessores parlamentares, defensores públicos e um coronel da Polícia Militar, convidado para prestar depoimento. Os representantes convidados da Policia Civil, delegado Glaucio Paz, e da Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM) de Niterói, delegada Gisele Rosemberg, não compareceram.
A audiência começou às 13h50, com o depoimento de Joyce, prostituta e proprietária do apartamento em que trabalha no prédio invadido pela polícia. Ela contou sobre os mandados ilegais de intimação que foram entregues antes do dia 23 e todos os abusos sofridos durante a invasão de dezenas de policiais nos quatro andares onde prostitutas trabalhavam. Foram enumerados roubos, humilhações, xingamentos, arrombamento de portas, depredação de bens particulares e ausência de mandado de busca e apreensão. “Tudo foi errado, a gente só quer trabalhar, mais nada”, afirmou. Ela contou ainda que quando as mulheres tentaram fazer denuncias na DEAM, “a delegada falou que não poderia interferir nas operações do 76. Então nenhuma das meninas conseguiu fazer a ocorrência no DEAM, ela se negou em fazer.”
Em seguida, Indianara Siqueira, prostituta e assessora parlamentar do deputado Jean Wyllys, relatou sobre o que vem acompanhando do caso desde a primeira manifestação, ressaltando a perseguição dessas mulheres, a falta de informação, ações ilegais e violência da polícia, as incessantes tentativas, por parte da polícia de impedir a ação dos advogados que apoiam as prostitutas no acompanhamento do caso e a continuação da presença da polícia militar em frente do prédio. “As violações continuam. As mulheres estão sem lugar para morar, sem lugar para trabalhar e seus filhos estão dependendo de ajuda das pessoas.”
Indianara leu a série de perguntas do deputado Jean Wyllys que necessariamente devem ser respondidas pela Polícia Civil, a fim de esclarecer o que está acontecendo e, sobretudo, identificar os responsáveis pelas violações:
1. Qual o fundamento jurídico ou legal no qual a polícia se baseou para interditar os 4 andares do prédio, sendo que inexistia laudo do Corpo de Bombeiros ou da Defesa Civil? E qual o motivo dessa interdição ter afetado somente esses quatro andares?
2. Tendo em vista que prostituição não é crime, qual o motivo de colocar faixas com os dizeres “cena do crime”, impedindo as prostitutas de voltarem para seus apartamentos?
3. Se os 4 andares estavam interditados, porque somente as prostitutas foram impedidas de adentrarem em tais andares, sendo que pessoas que não trabalham com prostituição tiveram o acesso liberado?
4. Havia mandados judiciais que fundamentassem a invasão, pelos policiais, de apartamentos? Se sim, qual o teor desses mandados? Caso inexistam tais mandados, qual o motivo das invasões e arrombamentos de apartamentos, sendo que muitos moradores e moradoras já estavam em vias de abrir a porta?
5. Qual o respaldo legal para a violência perpetrada contra as mulheres, inclusive física e violência sexual, principalmente em relação ao caso de um agente policial que admitiu, perante advogados representantes da OAB que “bateu sim, porque a menina estava muito nervosinha”?
6. Por que não foram requisitadas agentes policiais do sexo feminino para esse tipo de ação, já que houve a participação da DEAM? Por que a DEAM e as demais delegacias se recusaram, perante as vítimas de violência emanada dos policiais, a fazer registros de boletins de ocorrência? Qual o fundamento de tais recusas? Por que foi negado o direito dos advogados das vítimas de violência policial terem acesso a elas, se a imprensa teve amplo acesso a tudo? Havia mandado judicial para a condução coercitiva de mulheres à delegacia? Caso inexista mandado, por que houve a coerção?
7. Quais os motivos e a fundamentação que respaldam, juridicamente, a utilização de armamento pesado na ação?
8. Quais os motivos e a fundamentação que respaldam, juridicamente, a utilização de quantidade excessiva de agentes e viaturas policiais?
9. De quem emanou a ordem para a utilização de armamento pesado e quantidade excessiva de agentes e viaturas policiais na ação?
Devido à ausência dos representantes do DEAM e da Polícia Civil para responder a essas perguntas, foi decidido que as perguntas do deputado Jean Wyllys serão encaminhados para as delegacias e o Ministério Público em forma de ofício.
O cel. Chagas, do 12º Batalhão, foi convidado para participar da audiência porque, desde a última ação da Polícia Civil, quando mais de 100 mulheres foram expulsas de seus apartamentos, a Polícia Militar permanece no entorno do imóvel. Segundo o coronel, essa ação prevê sobretudo garantir a segurança dos próprios moradores do imóvel, inclusive das prostitutas. Quando questionado pelo deputado Marcelo Freixo sobre a razão do pedido da Polícia Civil, o coronel disse que o crime investigado não foi informado à PM.
Em seguida, Margarida Prado de Mendonça, advogada da Comissão de Direitos Humanos da OAB, lamentou os graves acontecimentos que mais uma vez se repetem “numa cidade já tão sofrida” e aproveitou para lembrar que, diante de tudo, torna-se ainda mais absurda a manutenção do “crime de desacato”, sendo este, sim, um abuso de autoridade. “Ou o Estado não controla mais sua polícia, ou há uma política deliberada de violação de direitos humanos”, disse.
A Defensora Pública que assumiu o caso, Clara Prazeres Bragança do Núcleo da Defesa dos Direitos da Mulher afirmou: “A gente não sabe muito bem o que levou a essa prisão de averiguação, e mais, em condições que não sei se são as melhores… A gente fica perguntando se o Estado tem que proteger ou se o Estado tem que agir o tempo todo com a ideia que proteger é acabar com aquilo que incomoda, e incomoda a quem cara pálida?.. Não havia necessidade de levar essas mulheres para a delegacia, porque se tivesse deputado eu não estaria aqui.” Ela relatou como foi ao prédio e à delegacia para conversar com cada um dos delegados e perguntar porque foi feito. Clara confirmou que “não tinha motivo legal, mas talvez tivesse na cabeça deles um motivo moral e com base nessa moral e nos bons costumes que eu sinceramente reprovo muito.” Além disso, lembrou que muitas mulheres não possuem os documentos do apartamento e as razões são as mais variadas e que seria necessário justificar, então, a posse desses apartamentos, de modo a qualificar o usufruto do imóvel, e, para tanto, convidou a todas para um atendimento na Defensoria Pública, na Avenida Marechal Câmara, 271, 7º andar, no dia 05/06/2014.
Inês Pandeló lamentou a ausência dos delegados Glaucio Paz, da 76ª DP, e Gisele Rosemberg, da DEAM, que justificaram a ausência por ocasião de uma “prisão” e “motivos pessoais”, respectivamente. A deputada lembrou que somente agora, após as denúncias terem sido registradas na defensoria pública, os delegados as registraram na delegacia. Por fim, o advogado do OAB Gustavo Proença, que vem acompanhando o caso desde o dia 23/05, lembrou o quão lamentáveis são as “prisões para averiguação”, que ferem todo e qualquer direito do cidadão e transgridem protocolos investigativos, mas se tornaram algo “normal” nos procedimentos da polícia. Proença lembrou que ontem foi realizada uma assembleia de condomínio dentro da delegacia, com alguns moradores, o que, segundo disse, era algo humilhante e ilegal. O coletivo de advogados voluntários da OAB, disse ele, está à disposição para acompanhar o caso.
O deputado Marcelo Freixo iniciou sua fala dizendo achar “estranho” o silêncio da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), para onde foi encaminhado o ofício do Observatório da Prostituição/UFRJ, com as denúncias. “Com isso o Executivo está devendo.” Segundo Freixo, o prédio da Caixa sofre ações arbitrárias há muito tempo. A diferença é que agora o centro passa por um processo de renovação e modernização oriundo de um projeto de cidade que assola o mundo. Freixo disse que mandaram, pela Comissão DH da ALERJ, 4 ofícios aos entes envolvidos no caso para a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos, a Polícia Civil, a Polícia Militar e a DEAM. A SEASDH não respondeu, nem a DEAM. A PM sim, prontamente respondeu. Freixo entende que o problema está centralmente na ação da Polícia Civil, que “não quer saber”. A DEAM não respondeu ao ofício, e o delegado Glaucio Paz respondeu sumariamente ao ofício, precisamente às perguntas. Na resposta ele cita o mandado de busca, mas, ainda assim, esclareceu Freixo, ele jamais poderia embasar a ação policial nesse argumento, pois nesse caso as prostitutas deveriam ser tratadas como VÍTIMAS, e não como criminosas. E, ainda que fossem criminosas, não há qualquer justificativa para tratá-las dessa forma, nem explicação sobre o processo legal, até o momento.
Freixo também falou que considerando a falta de denúncias feitas pelas mulheres agredidas e a ausência e silêncio da DEAM sobre o caso, ele não vai esperar que a Defensora Pública faça a denuncia à DEAM e esperar que a DEAM encaminhe para a corregedoria. A Comissão dos Direitos Humanos vai encaminhar as denúncias para a corregedoria da polícia diretamente.
O deputado Freixo afirmou que a Comissão dos Direitos Humanos também investigou o caso, e confirmou que não há qualquer registro de a defesa civil ter visitado esse edifício. “Nunca foi feita pela Defesa Civil qualquer vistoria desse local.” Sendo assim, não pode haver a denúncia de que esses problemas existem. Há somente uma questão concernente ao registro de incêndio, mas que não é o suficiente nem poderia justificar a remoção de pessoas de seus apartamentos legalmente. Freixo concluiu que foi “um procedimento absolutamente desastroso, ilegal, que violou uma quantidade enorme dos direitos fundamentais das pessoas atingidas” pela operação. “E acho que temos que ser muito direitos, convocar a Defesa Civil para a próxima audiência, para que a gente possa cercar por todos os lados, e por fim, também queria propor que temos que convocar a chefia da Polícia Civil, porque a chefia da Polícia Civil tem responsabilidade sobre seus delegados.”
A Deputada Inês Pandeló fechou, afirmando que será realizada outra Audiência Pública, para a qual serão convocados o delegado Gláucio Paz da Silva e a delegada Gisele Rosemberg, e convidados a Chefia da Polícia Civil, a responsável pela Defesa Civil, o Ministério Público do Estado e também o de Niterói. Pedidos de informação assinados pelas duas comissões serão enviados para o Ministério Publico e delegacias.