Trabalho sexual em zona de guerra: uma história muito mal contada
Os conflitos em andamento na Ucrânia, na Palestina, no Iêmen, na Síria e em outros lugares do mundo têm provocado muita discussão, indignação e angústia. Mas um aspecto sempre fica jogado para baixo do tapete: o trabalho sexual em zonas de guerra. Em artigo publicado em 23 de junho de 2023 no Messy Nessy Chic, Cecile Paul joga uma luz sobre essa questão.
Sexo e guerra parecem ser os companheiros mais incômodos; no entanto, as duas coisas têm tido um relacionamento muito intenso ao longo de séculos de conflito. Já na Terceira Cruzada, o rei Felipe II de França, horrorizado com estupros e sodomia desenfreados em seus exércitos, instruiu que barcos cheios de “raparigas da alegria” fossem enviados da França para “recompor o foco” de suas tropas.
Setecentos anos depois, o Estado francês ainda instalava bordéis móveis nos campos de batalha, conhecidos como Bordels Mobiles de Campagne (ou BMCs), presentes durante as duas Guerras Mundiais, a ocupação da Argélia, bem como outros territórios coloniais franceses e, em meio a muita controvérsia, continuavam em suas bases militares ainda em 2003. As trabalhadoras sexuais “sancionadas”, embora nunca reconhecidas publicamente pelas autoridades, têm sido uma parte tradicional dos nossos exércitos, pelo menos desde as campanhas de Alexandre, o Grande. Esse não é o tipo de história de guerra que costuma ser contada.
Durante a Primeira Guerra Mundial, o governo francês forneceu ativamente prostitutas para suas tropas, em grande escala. Embora ela não seja oficialmente mencionada em documentos militares até pelo menos a década de 1920, os registros mostram que uma associação gerida pelo governo e dedicada à coordenação de bordéis militares móveis já existia em 1901, com endereço oficial na Rue de Nazareth 73, em Paris.
Durante a Primeira Guerra Mundial, essas instalações móveis, literalmente grandes caminhões de reboque conhecidos como BMCs, podiam acomodar até dez mulheres trabalhadoras nas linhas de frente da guerra. A massa de jovens enviados para a linha de frente impulsionou a procura, e mais prostitutas e cafetões se seguiram. Não só as autoridades forneciam seu próprio exército sancionado de profissionais do sexo, mas, nos quartéis e nos campos de batalha, as raparigas locais também recorriam à prostituição naqueles tempos de desespero. A demanda geralmente atingia o pico antes das grandes batalhas.
O médico e escritor francês Léon Bizard escreveu em suas memórias das mâison tolérés francesas da Primeira Guerra Mundial:
“Você podia encontrar o que quisesse nos bordéis da região e nos acampamentos. Era uma luta corpo a corpo, um negócio difícil, perigoso e repugnante… tudo sob a ameaça constante de ataques aéreos e bombardeios.”
Além de ser fundamental para manter o controle sobre grandes números de homens em condições de combater, havia outras motivações para fornecer prostitutas sancionadas às tropas. Com a chegada de unidades indígenas das colônias ao território francês, a implantação de bordéis sancionados foi parcialmente motivada por motivos racistas e classistas – para impedir a ocorrência de relações interraciais com mulheres brancas francesas locais.
Mas talvez uma das motivações mais urgentes para os militares supervisionarem a atividade sexual de seus soldados fosse controlar as taxas de doenças sexualmente transmissíveis. Enquanto a chuva de balas e granadas matava nos campos de batalha, a sífilis era a assassina silenciosa. Com uma taxa de sífilis estimada em 30% entre os militares durante a Primeira Guerra Mundial, algo tinha de ser feito. As tentativas de rastrear infecções através de pressão sobre homens e mulheres falharam e, já em 1915, os médicos militares franceses criaram centros de tratamento para soldados, enquanto os bordéis regulamentados eram sujeitos a inspeções médicas regulares.
Também ficou evidente que alguns homens pretendiam deliberadamente visitar raparigas que pudessem infectá-los com DSTs. Uma internação hospitalar para tratar sífilis ou gonorreia significava um tratamento de 30 dias fora do campo de batalha. A taxa de infecção dos soldados britânicos, que tinham “autorização” de visitar bordéis se estivessem no exterior, foi estimada em 1 a cada 5 em 1916. E como todas as coisas da sociedade baseada em classes, os oficiais iam às instalações de Blue Lamps (luzes azuis) e os soldados rasos, para as de Luz Vermelha.
Em 1963, o cantor belga Jacques Brel escreveu uma canção sobre os BMCs da perspectiva de um soldado. Mais tarde, uma cover em inglês foi escrita e apresentada em um musical de 1968 chamado “Jacques Brel está vivo e bem e morando em Paris”. Ouça abaixo…
Mas e as mulheres que prestavam esses serviços sancionados pelo Estado? A poetisa e autora britânica Hollie McNish sentiu-se compelida a escrever sobre as trabalhadoras sexuais esquecidas pelos livros de história dos tempos de guerra, cujo papel “em cada guerra – tantas vezes menosprezado, estigmatizado e negligenciado – não é realmente visto como um papel. Os cartazes [de alerta sobre sífilis] dessas mulheres, retratadas como demônios, realmente dizem tudo.”
Tema de um projeto de arte que ela chamou de Causa e Efeito, McNish captura de forma pungente o sofrimento brutal dessas mulheres que servem aos soldados e de seu país…
Durante a Segunda Guerra Mundial, os japoneses escravizaram e traficaram cerca de 410 mil mulheres, que eles chamaram de “mulheres de conforto”, no Japão, na Coreia, na China e no Sudeste Asiático, para servirem como prostitutas e elevarem o ânimo dos soldados japoneses. Acredita-se que aproximadamente três quartos delas morreram e a maioria das sobreviventes ficou infértil.
Os traficantes e os aproveitadores enganavam as raparigas com falsas promessas de emprego e, em alguns casos, o governo e os traficantes trabalhavam em conjunto para colocar na prostituição mulheres originalmente recrutadas para trabalhos forçados. Nas colônias recentemente conquistadas, como o Vietnã ou a Indonésia, as mulheres de conforto eram cooptadas mais diretamente através da colaboração entre o exército e os traficantes que seguiam as tropas.
Era um segredo aberto que os militares dos EUA fizeram uso do sistema de “mulheres de conforto” no Japão após o fim da guerra. À medida que as forças dos EUA e os australianos (que originalmente ocuparam Hiroshima e arredores, antes de entregarem o poder aos americanos) entraram no Japão, os líderes provisórios temiam que as mulheres locais pudessem ser sujeitas a “violações em massa”. O príncipe Konoe Fumimaro, que serviu como primeiro-ministro do Japão, insistiu que “estações de conforto” fossem disponibilizadas às tropas que chegavam para a ocupação do país no pós-guerra.
Apareceram anúncios em jornais japoneses à procura de prostitutas para prestar serviços sexuais às tropas norte-americanas que chegavam, que passariam a conhecer estas mulheres como “meninas gueixas”, o que alimentou ainda mais, no Ocidente, o mal-entendido das gueixas como prostitutas.
No Vietnã da década de 1950, os franceses tinham uma base em Dien Bien Phu, onde sete mulheres vietnamitas e 11 mulheres argelinas foram destacadas em BMCs para atender a 16 mil soldados. Mas à medida que a situação piorava para o posto avançado francês, as mulheres tornaram-se heroínas improváveis, trabalhando como enfermeiras. Em seu livro “Hell in a Very Small Place” (inferno num lugar muito pequeno), escrito pelo jornalista Bernard Fall, que fazia parte da guarnição, sua história esquecida é compartilhada em detalhes angustiantes.
“As cinco meninas vietnamitas e sua cafetina foram apanhadas na batalha, como todos os outros, e sobreviveram em bunkers subterrâneos como enfermeiras auxiliares, como as prostitutas argelinas que também não tiveram como sair e permaneceram…
Muitas vezes, as mulheres eram vistas na água de uma trincheira até a cintura, esperando para ajudar os feridos em algum ponto abrigado. Num caso, um soldado em estado de choque desenvolveu a fixação de que era uma criança pequena e tinha de ser alimentado pela mãe; uma das prostitutas vietnamitas vinha todos os dias a esse abrigo para alimentá-lo.”
Das 11 prostitutas argelinas, quatro foram mortas durante a batalha. Não se sabe o que aconteceu com as vietnamitas. Alguns relatórios dizem que elas foram executadas por terem colaborado com as forças coloniais.
Ao contrário dos militares americanos, que negaram o problema, ou dos britânicos, que fizeram vista grossa, os franceses continuaram com essa prática discretamente, até que isso se tornou politicamente inaceitável num mundo moderno e liberal.
A França continuou a empregar Bordels Mobiles de Campagne bem depois da Segunda Guerra Mundial, embora em 1946 os bordéis tivessem sido proibidos na própria França. O último BMC em território francês, na Guiana Francesa, foi fechado em 1995, supostamente depois de uma denúncia de um cafetão brasileiro por concorrência desleal. E só em 2003 fecharam outro no Djibouti.
Quando uma guerra termina, preferimos olhar para o futuro e não insistir nos detalhes sombrios do passado, e por isso falamos romanticamente dos heróis do campo de batalha, da indústria e da força de trabalho que fortaleceram a sua luta; mas não da exploração, da prostituição e das doenças sexualmente transmissíveis. Não é do gosto do público – a mistura de sexo e tempos de guerra tem sido deixada fora dos livros de história, mas, tal como a guerra, não vai desaparecer.
Cecile Paul é redatora do Messy Nessy Chic, colunista da @pynck.com, publisher da Eye-On Maps & Guides, designer de moda, consultora de marketing e professora sênior do Edinburgh College.