Transfobia

Sangue em cima do sangue

Por Erika Bismarchi

Tô pêssega! O que se faz no banheiro? O que você faz no banheiro? Eu faço a mesma coisa que você: mijo, cago e, quando a situação está complicada, dou um tapa no visual. Coisas que qualquer ser humano faz, né? Eu poderia até propor uma discussão, como você quer, mas eu prefiro continuar a passar meu batom cor de carmim aqui no espelho.

Nossa, miga! Não acredito que tenho que dividir o banheiro com pessoas transexuais. Eles são homens. Não quero dividir o banheiro com alguém que nasceu homem. As pessoas precisam entender alguns conceitos, antes de defenderem que eles ocupem o mesmo espaço que nós. Não basta performar um trejeito imposto para nós mulheres pela sociedade, como deixar os cabelos longos, se depilarem, usar roupas curtas e justas que só objetificam a mulher. Enfim, essas asneiras que julgam ser a essência feminina. Essas coisas que lutamos tanto para derrubar, dia após dia.

Mas deixa eu te contar, miga: ontem rolou a maior briga com o mozinho. Ele foi grosso comigo, porque ele queria que eu apagasse um amigo meu dos meus contatos no celular. No meio da discussão, ele agarrou meu braço com força, segurou firme a minha blusa e até rasgou, você precisa ver. E me chamou de puta! Acredita?

Puta? Ah! Na noite anterior tive que dar para meu marido e para aquela piranha da amiguinha dele. Se não for assim, vamos nos separar. O que será de mim? Do seguro do meu carro? Da prestação do meu cartão de crédito? Do colégio particular do meu filho? Mas isso não é prostituição, né? Por falar em prostituição, ontem aconteceu uma manifestação de prostitutas para pedir pela regulamentação da profissão. Um horror, né? Vender o corpo não é trabalho. Por falar em corpo, você viu como aquela menina engordou? Está feia! Desse jeito não vai arrumar marido nenhum.

Mal sabiam elas, mas aquela mulher engordou desproporcionalmente no último semestre porque um homem, recém-formado, de 25 anos, havia assumido o papel na gerência da empresa que ela trabalha. Acontece que o cargo de gerente é dela, mas que excepcionalidade, abriu o mesmo cargo para o jovem rapaz. Será que ela seria demitida? Conta a rádio-fofoca que o salário dele é mais alto. Mas como? Ela está há tanto tempo na empresa.

Pela Constituição Federal do Brasil, de 1988, no artigo quinto, fica estabelecido a relação jurídica de igualdade de gênero, na qual afirma que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, mas isso é apenas a ponta do iceberg, explicava a palestrante, entre conversinhas e risadinhas da plateia predominantemente feminina.

Uma explosão! Um grupo de garotas sai em disparada e entra no banheiro, de forma orquestrada. Elas gritavam em coro “mulheres menstruam”, fazendo uma analogia à palestra que acontecerá, às transsexuais e a diferença entre gênero. De forma alucinada, elas colavam absorventes sujos de sangue nos espelhos.

Três terceirizadas da limpeza são chamadas para limparem o banheiro. Apenas duas delas terminaram o ensino fundamental. Uma delas é mãe solteira. Na noite anterior, ela tinha ouvido de sua mãe que não ela podia sair para comprar uma blusa nova no shopping com a amiga, que “na hora de dar tinha sido bom. Por isso, que cuidasse da criança sozinha”.

“Para ser mulher precisa menstruar”, pensava essa mãe solteira. Quanta bobagem! Menstruo desde os 10 anos, engravidei e sustento meu filho sozinha, porque o pai o abortou mesmo antes dele nascer. Enquanto limpava os espelhos, sentia o quanto tudo aquilo era desigual. A cada absorvente descolado, a cada parte do rosto que era revelado, vinham à tona as cicatrizes físicas, as marcas psicológicas do racismo, do machismo e do patriarcado.

Tá vendo, querida? Sendo assim, o banheiro não se torna um lugar seguro por agrupar pessoas do mesmo gênero, como se não existissem orientações sexuais, classes, raças e biotipos diferentes. Já pensou que o banheiro feminino pode se tornar um ambiente inseguro para mim e para todas aquelas que não fazem parte da sua identidade? Outra coisa, se proibissem a nossa entrada quem fiscalizaria quem é trans? Quem é mulher?

Amiga, diversas mulheres diminuem e humilham outras, muitas vezes com pequenas e sutis expressões machistas e degradantes, colocam sangue acima de sangue. Mas e quando o buraco da desigualdade é mais embaixo? E quando um sangue se sobressai a outro? Sabia que o Brasil lidera o número de assassinatos de pessoas trans no mundo? Sabia que o Brasil é o sétimo país que mais mata mulher? Sabia que o homicídio de mulheres negras aumentou mais do que 50% nos últimos dez anos? Sabia que esses dados podem mudar? Quando – principalmente – a subjetividade da desigualdade mudar, esses números mudarão também. Quando a vida privada não estiver permeada por preconceitos, e suas minuciosas manifestações, talvez, só assim, todas nós estaremos seguras em qualquer banheiro, em qualquer privada.


Erika Bismarchi é uma jornalista diletante. Diplomou-se em jornalismo não para ter um crachá da TV Globo, mas para usá-lo como ferramenta de seu objetivo pessoal, que é contribuir para tentar tornar o mundo menos desigual e mais justo.

Com essa ferramenta, pesquisa e investiga há 9 anos questões que permeiam a desigualdade entre gêneros. Com esse mesmo princípio utópico, atualmente cursa o último ano de Serviço Social.

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