Legislação

Lei antiprostituição do Canadá aumenta temor sobre segurança das trabalhadoras sexuais

Liam Casey e Alexandra Topping escrevem para o The Guardian sobre a entrada em vigor, dia 6, da lei canadense que criminaliza o trabalho sexual.

No ambiente luxuoso do Ritz Carlton, no centro de Toronto, Delight ergue uma taça gelada de Sauvignon Blanc. Não é um ato de comemoração, é mais uma tentativa de afogar o desespero.

Delight se reuniu com um grupo de colegas trabalhadoras sexuais para marcar o momento quando, pela primeira vez na história do Canadá, comprar sexo tornou-se ilegal.

Logo depois da aprovação da lei, nem uma única voz falou em abandonar o jogo. “Foi mais ou menos como dê a si mesma um dia para ficar triste, e levante-se amanhã e vá trabalhar”, disse Delight.

Apenas 12 meses antes, o cenário não poderia ser diferente. Em 20 de dezembro de 2013, Delight e suas amigas brindaram à notícia de que a Suprema Corte do Canadá havia derrubado três leis antiprostituição, dizendo que elas eram inconstitucionais e violavam o direito das prostitutas à segurança. A decisão saiu depois de uma dura batalha legal, lançada quando Terri-Jean Bedford, uma dominatrix que trabalha sob o nome de Madame de Sade, desafiou a constitucionalidade das leis.

Trabalhadoras sexuais de todo o Canadá saudaram o novo alvorecer, acreditando que sua profissão seria descriminalizada. Elas tinham a esperança de que qualquer nova lei que fosse apresentada permitiria que mulheres usassem suas casas ou lugares alugados para vender sexo – e contratar uma empregada ou um segurança enquanto trabalhavam, de modo a tornar um pouco mais segura o que continua a ser uma profissão inegavelmente perigosa.

Em lugar disso, nesta semana, um projeto controvertido, que segue o chamado Modelo Nórdico – que torna ilegal comprar sexo, mas não vender – tornou-se lei. Apresentado pelo governo conservador de Stephen Harper, o Projeto C36, ou Lei de Proteção a Comunidades Exploradas, parece reproduzir medidas similares àquelas que haviam sido derrubadas um ano antes.

O pensamento por trás da nova lei é claro: a deputada Stella Amber, no Comitê de Justiça que debatia o projeto, chamou-o de “lei antiprostituição”, enquanto o ministro da Justiça disse que o governo tem o objetivo de limitar tanto quanto possível o comércio de sexo.

A batalha sobre a prostituição dividiu o país. Antes de a tinta estar seca sobre a nova lei, a primeira-ministra da província de Ontario, Kathleen Wynne, declarou que pediu à procuradora-geral da província que investigue a validade constitucional da nova lei, por causa de uma “preocupação grave” de que a legislação não protegeria as trabalhadoras sexuais.

“Não sou uma especialista, e não sou advogada, mas, como primeira-ministra desta província, estou preocupada que essa legislação, agora a lei da terra, não torne as trabalhadoras sexuais mais seguras”, disse Wynne no domingo, dia 7, um dia depois de a lei entrar em vigor.

Então, como as leis sobre prostituição do Canadá deram uma virada de 180 graus em menos de um ano?

Inicialmente, a Suprema Corte revogou as proibições de haver um lugar regular para sexo, onde as trabalhadoras podiam selecionar clientes ao comunicar-se umas com as outras e com outros “que vivessem dos proventos da prostituição”. Mas o tribunal não emitiu nenhuma orientação para o estabelecimento de novas leis, deixando o assunto para o Parlamento.

Um ano depois, o projeto C36 tornou ilegal lucrar com os “benefícios materiais” da prostituição – o que quer dizer que um segurança ou uma empregada pagos por uma sexual podem pegar 10 anos de prisão – e introduziu uma proibição geral sobre comunicações envolvendo o trabalho sexual.

“Tínhamos tanta esperança”, disse Delight, que pediu para não ter seu nome verdadeiro revelado, por causa do temor de que agora ela possa ser perseguida. “Agora estamos fragmentadas e menos seguras. Mulheres vão morrer por causa dessa nova lei.”

Jean McDonald, diretora executiva da Maggie’s, um grupo de apoio da base das trabalhadoras sexuais de Toronto, disse que ao saber que a nova lei havia sido aprovada, caiu no choro. “Ela é muito, muito pior do que nós esperávamos”, disse ela.

Trabalhadoras sexuais temem que a nova legislação as torne muito mais vulneráveis a ataques, com menos tempo e oportunidade para selecionar clientes e menos capacidade para partilhar informações sobre clientes violentos.

Outra consequência não pretendida da lei é que ela pode empurrar prostitutas para a criminalidade. O governo diz que seu alvo são os clientes que pagam por sexo, e não aquelas que o vendem, mas não há nada na lei que proteja especificamente as prostitutas de acusações criminais, disse o advogado criminalista Daniel Brown, de Toronto.

“Temos responsabilidade partilhada no Canadá, o que significa que qualquer um que ajude ou encoraje uma pessoa a cometer uma contravenção é culpada da mesma contravenção”, disse Brown.

O movimento Equality Now (Igualdade Agora), que fez lobby pela nova lei canadense e está pressionando para que leis semelhantes sejam adotadas em outros países, comemorou a aprovação, Mas, em um comunicado, o grupo reconheceu que a lei pode ser prejudicial às trabalhadoras sexuais. “Embora permaneçam certas provisões problemáticas que criminalizam a venda de sexo, temos a esperança de que elas sejam tratadas no futuro, à medida que a lei seja revisada”, diz o comunicado.

O Equality Now, ao lado de uma coalizão de grupos conservadores e religiosos que se uniram a organizações feministas, insiste que a lei é necessária e vai cercear uma indústria que ele argumenta que é fundamentalmente exploratória e perigosa. “A violência prevalece no sexo comercial”, disse Melina Lito, uma porta-voz do grupo. “Temos que ter a demanda por sexo como alvo, de modo a fazer avançar a igualdade de gêneros. Essa lei é o passo certo para proteger aquelas mulheres.”

Mas críticos já estão se propondo a desafiar a nova lei, parte da qual torna ilegal que terceiros publiquem anúncios de sexo. Revistas e sites na internet que o façam podem ser acusados, mas Alice Klein, cofundadora e editora da revista independente NOW, de Toronto, já disse que não vai cumprir a lei. Escrevendo na revista, que dedica mais de 10% de suas páginas a anúncios de sexo, ela disse: “Estamos cientes do fato de que anunciar beneficia particularmente as trabalhadoras sexuais independentes, porque oferece uma maneira muito mais segura para relacionar-se e fazer negócio com os clientes.”

A nova lei do Canadá surge num momento em que vários outros países reconsideram suas leis sobre prostituição. Em uma decisão inesperada tomada em outubro, a Irlanda do Norte tornou ilegal a compra de sexo. Uma lei semelhante passou na Assembleia Nacional da França, mas foi derrubada no Senado. A República da Irlanda está revisando suas leis, enquanto um movimento em defesa do Modelo Nórdico está ganhando força no Reino Unido.

A Suécia foi o primeiro país a adotar legislação criminalizando a compra de sexo, em 1999, seguida pela Noruega e pela Islândia. Seu impacto tem sido difícil de avaliar, porque as pesquisas frequentemente são conduzidas por campanhas de um lado ou do outro. De acordo com uma pesquisa feita em 2010 pelo governo sueco, a lei reduziu a prostituição de rua pela metade, enquanto a proporção de homens que pagam por sexo diminuiu de 12,7% em 1996 para 7,6% em 2008. A lei também mudou a opinião da sociedade sobre a compra de sexo: em 1996, 45% das mulheres e 20% dos homens apoiavam a criminalização, mas em 2008, os números haviam crescido para 79% e 60%, respectivamente.

Mas os grupos de defesa dos direitos das trabalhadoras sexuais argumentam que o Modelo Sueco tem sido uma experiência fracassada e aumentou o estigma contra elas. Os críticos apontam para um relatório da Comissão Legal sobre HIV da ONU, que diz que “desde sua entrada em vigor, em 1999, a lei não melhorou, mas de fato piorou, as vidas das trabalhadoras sexuais”. O relatório diz que embora o trabalho nas ruas tenha se reduzido à metade, o comércio sexual continua nos níveis anteriores à legislação.

Então, o que vem em seguida para o Canadá? Grupos de trabalhadoras sexuais, tanto no país como fora dele, continuarão a pressionar para que a nova lei seja revogada pela Suprema Corte – desta vez definitivamente, disse Laura Lee, uma acompanhante ligada ao Sindicato Internacional das Trabalhadoras Sexuais. “Isso pode ter desacelerado o movimento, mas não o interrompeu, de jeito nenhum”, diz ela. “Se há alguma mudança, é que estamos ganhando impulso e nos tornando mais fortes o tempo todo. Sem dúvida, nós não vamos embora.”

Mas elas poderão ter de esperar. Em Ontario, a primeira-ministra Wynne pediu à procuradora-geral, Madeleine Meilleur, que a aconselhe sobre as opções da província, caso a legislação nacional se mostre duvidosa em termos constitucionais.

“Como eu disse antes, minha prioridade nesse debate é assegurar que nossas leis e instituições melhorem a segurança daqueles que são vulneráveis – neste caso, as trabalhadoras sexuais: uma classe principalmente de mulheres, que são desproporcionalmente vítimas de violência sexual e física”, disse Wynne nesta semana. “Portanto, acredito que existe mérito em considerar se a nova legislação do governo conservador passa nesse teste.”

Mas, como o projeto agora é lei, as opções dos oponentes são limitadas. Se Meilleur concluir que as novas regras são inconstitucionais, ela poderá levar o caso ao Tribunal de Recursos de Ontario, disse Brenda Crossman, professora de Direito da Universidade de Toronto.

“Aí, fica complicado. As opiniões desse tribunal não são de aplicação obrigatória dentro da província, e certamente não serão foram de Ontario”, disse Crossman.

Os críticos poderão ter de esperar que mudanças sejam feitas de modo que a lei possa ser desafiada em termos constitucionais, um processo que que poderá demorar anos.

Delight acredita que a nova lei já teve um impacto violento. Ela conta sobre uma amiga, também acompanhante, que havia marcado um encontro com um homem em um hotel perto do Aeroporto Internacional Pearson, em Toronto, na manhã de terça-feira. Três homens invadiram seu quarto, onde dois deles a atacaram sexualmente, antes de espancá-la e roubar seu dinheiro e suas roupas.

“É um momento horrível para ser uma acompanhante no Canadá”, disse Delight. “Um momento horrível.”