A fantasia muito americana de salvar as trabalhadoras sexuais delas mesmas
A jornalista, escritora e ex-trabalhadora sexual Melissa Gira Grant escreve para a revista Vice sobre o programa 8 Minutes, da A&E.
A internet supostamente mudou tudo o que se refere ao sexo comercial. Repórteres descobriram (e de novo, e de novo) que “prostitutas” estão entre as 288 milhões de pessoas que usam o Twitter. Anúncios na internet, Facebook, Instagram e Snapchat, todos têm sido acusados de tornar o sexo pago fácil demais de encontrar. Agora, não temos como saber ao certo se a internet expandiu a indústria do sexo ou – mais provável – simplesmente a tornou mais visível. Mas a era do sexo comercial digitalizado e nas redes inspirou pelo menos uma nova forma de entretenimento: o vídeo de resgate de acompanhantes.
Encenados em quartos de hotel, apartamentos e casas privadas onde acompanhantes e outras trabalhadoras sexuais se encontram com clientes legítimos, esses vídeos são gravados secretamente. Os homens que os encenam – policiais, pastores, personalidades da TV – estão, juntos, engajados em algo não muito diferente dos homens que pagam por sexo: uma fantasia, estrelando eles mesmos.
Chamemos isso de imposição light da lei.
A mais recente celebridade da imposição light da lei é Kevin Brown, um ex-detetive da polícia de Santa Ana (Califórnia). Agora ele opera a Igreja Internacional Lado a Lado e uma organização chamada “Lives Worth Saving” [vidas que vale a pena salvar]. Depois de passar pelo botão de “doações” em seu site, você pode se inscrever para tornar-se membro de suas equipes STREET ou CSI, que monitoram lugares onde trabalhadoras sexuais podem ficar ou fazer publicidade, ostensivamente para identificar “pistas que envolvam tráfico”. (Brown parece fazer uso intercambiável da expressão “tráfico” e do trabalho sexual tal como é propagandeado em sites como Backpage e Craiglist, e não menciona outras formas de tráfico fora da indústria do sexo.) Ele descreve sua missão e o trabalho de vigilante amador como “um ministério único”.
Essas atividades são voluntárias, mas o ministério de Brown o tornou uma figurinha favorita para mídia, quando ela precisa de um homem para explicar quais tipos de “garotas” se envolvem no trabalho sexual. Brown até traz seu próprio rolo de filme extra: em fevereiro de 2014, uma afiliada local da CBS exibiu suas cenas, tomadas por câmera escondida, da tentativa de resgate de uma mulher supostamente engajada em trabalho sexual, com Brown fingindo ser um cliente para fazê-la falar com ele e gravando-a secretamente. “Brown diz que muitas das garotas com quem ele faz contato não são o que você poderia pensar”, diz o repórter na tela. “Muitas são educadas e têm famílias. Ele diz que o que concluiu é que elas simplesmente são manipuladas por seus traficantes.”
As várias enganações de Brown – fingir que é um cliente, trazer uma câmera e exibir o que foi gravado – são apresentadas sem comentários.
Pos seus esforços, Brown foi recompensado com seu próprio reality show. Dos mesmos produtores de Catfish, Gigolos e Cellblock 6: Female Lockup, aparece agora 8 Minutes, estrelando Brown e outro ex-policial, Greg Reese. O título se refere ao tempo que os dois dão a si mesmos para confrontar trabalhadoras sexuais e convencê-las a desistir, no ato, da profissão. Isso é, como o roteiro do piloto da série diz tão honestamente, “uma das missões mais perigosas e voyerísticas no país” (Quando contatei Brown para que fizesse comentários, ele me encaminhou a seu assessor de imprensa no canal A&E).
A audiência deve se perguntar se esses ex-policiais não estão também agindo como manipuladores, buscando mulheres para seu próprio ganho. Ou será que a maioria das pessoas não consegue reconhecer a viagem de poder envolvida em um exercício tão agressivo e tão público de humilhação? Para mim, isso traz à lembrança uma expressão há muito não usada para se referir a uma mulher que vende sexo: “mulher pública”. Tempos atrás, entendia-se que o pecado das trabalhadoras sexuais era a exibição imprópria do que se presumia estar disponível para todos os homens, e por aquilo que as leis da época se referiam como “ganho ilícito” – o delas.
Talvez não existam mais estacas erguidas para punir trabalhadoras sexuais em praça pública- se é que ainda existem praças nas cidades modernas – mas há centenas de canais e clipes com os quais o público pode deixar de lado totalmente a humilhação em praça pública. À noite, ou por encomenda, podemos espiar corpos em quartos e emitir nossos próprios julgamentos.
Seria fácil dizer que esse show é um tipo de pornografia, vestido levemente em boas intenções. Uma descrição mais forte, tendo em vista as histórias pessoais de Brown e Reese, seria a de um drama policial da vida real. Oito minutos são suficientes, diz o material publicitário, para convencer uma mulher a escapar com esses homens estranhos para alguma vida melhor prometida. Dê uma olhada no registro de prisões de uma prostituta, ou sente-se em um tribunal de verdade e você verá mulheres a quem mal se dá esse tipo de consideração.
Nos movimentados “tribunais de tráfico”, como aqueles em Nova York, sobre os quais venho escrevendo há algum tempo, presume-se que todas as mulheres presas por prostituição precisam desse tipo de resgate. Promotores decidem se a elas será oferecida a distração de sessões de terapia determinadas pelo tribunal. Os juízes podem decidir os casos das mulheres em poucos minutos – metade do tempo que Brown e Reese dão a si mesmos. Todos eles dependem de noções da psicologia popular: o que uma mulher que vendeu sexo precisa é de autoestima, alguém que realmente se importe com ela. Eles não se desviam muito dos estereótipos machistas sobre por que mulheres vendem sexo – elas o fazem, de acordo com esse discurso, por causa de algum fracasso pessoal, não importam se elas gostam disso ou não, e certamente não é por causa do dinheiro. As linhas que separam todas essas fantasias se confundem. Mesmo depois que mulheres foram “resgatadas” ou presas, ainda se espera que elas desempenhem seu papel.
Em dezembro, 8 Minutes recebeu luz verde para oito episódios. Quando perguntei à assessora de imprensa do show como as mulheres são escolhidas, ela se recusou a responder, “porque nós ainda estamos em produção”. Quantas mulheres serão alvos de Brown? Quantas terão seu trabalho e suas vidas perturbadas por estranhos e câmeras e o temor de exposição?
8 Minutes já enfrenta críticas. Samantha Allen, do Daily Beast, apelidou a produção de “Apanhar uma Trabalhadora Sexual“; o blog de sex workers Tits and Sass comparou o show a uma emboscada, que coloca em risco até mesmo trabalhadoras que querem deixar a profissão. Além disso, como destaca a escritora Lane Champagne, “já disseram a elas para desistir, muitas vezes”. Embora o show possa parecer chocante, não há muita novidade para ver ali, exceto, talvez, o tamanho do palco.
“Este é um daqueles grandes espetáculos que estavam realmente acontecendo, não importa se alguém estava filmando ou não”, disse o produtor executivo Tom Forman à Entertainment Weekly, como se o fato de haver uma equipe de televisão à mão fosse uma coincidência incrível.
Os shows e pegadinhas que fazem parte da imposição light da lei estão longe de ser sórdidos. São uma fantasia muito americana. São de uma América onde se presume que mulheres jovens estão se dando absolutamente bem, até que elas atravessam a linha da venda de sexo – o ato que seus resgatadores tentam reverter. Eles são encenados na América, onde, por trás de qualquer porta de hotel, qualquer mulher pode se ver diante de um destino parecido, à espera da mesma solução.
Essa América de fantasia não tem ruas onde mulheres são assediadas, casas inseguras, escolas com mensalidades exageradas e policiamento idem, empregos que mal cobrem o custo de chegar lá turno depois de turno, ou cadeias e abrigos aos quais elas já foram sentenciadas, e dos quais já escaparam. Nessa América de fantasia, tudo o que essas mulheres precisam é que um cara venha e as convença a abandonar suas próprias decisões. Mas é dessa fantasia que as trabalhadoras sexuais podem estar tentando escapar.
fantasia que é observável também na vertente feminista radical.