Combatendo o estigma

20 atitudes sutilmente preconceituosas que você pode ter sem nem perceber

Das melhores coisas que me aconteceram durante este período em que estive trabalhando como prostituta, e me expondo, mantendo pouco segredo e distância entre a minha vida pessoal e profissional, foram as amizades que conquistei. Conheci gente das mais diversas atividades e idades, seja nos programas, seja em eventos ou encontros de internautas. Conheci muita, muita gente legal mesmo – mas também aprendi assim que nem todas as pessoas que se aproximavam eram verdadeiramente isentas de preconceitos. Muitas simplesmente fascinadas pelo (que consideram ser) ‘underground’ ou pelo que de exótico conseguem perceber na figura de uma prostituta que escreve acabam se aproximando sem abrir mão de estereótipos e conceitos endurecidos do que pensam que somos. Da dificuldade de nos enxergarem como mulheres normais e iguais, que apenas exercem uma atividade diferente, acabam surgindo determinados comportamentos que em si trazem o preconceito velado. Decidi listar alguns desses comportamentos que acabamos tendo e às vezes sequer os percebemos como perniciosos. Ninguém está livre de ter esse tipo de atitude sem se dar conta – nem eu, nem vocês.

Segue:

1. “Nossa, eu jamais teria coragem e o estômago pra fazer o que você faz.”

O que eu faço = sexo – com estranhos – em troca de dinheiro. Existem centenas de coisas que eu às vezes penso que não teria estômago para fazer (tal como banhar elefantes), mas quando me coloco como alguém que ‘jamais teria essa coragem’, ponho minha interlocutora numa saia justa tremenda, como se ela estivesse fazendo algo estupidamente incomum e nojento.

2. Elogia excessivamente e incansavelmente minha inteligência, o fato de eu escrever e me expressar corretamente e o quanto isso me faz parecer diferente do que (ela pensa que) são pessoas que exercem minha atividade. Afinal de contas, pra uma puta eu penso até demais.

3. Diz que não sabe como são as coisas “no meu mundo”. Eu, a extraterrestre, meu mundo.

4. Qualquer “desvio de comportamento” de um filho meu só pode estar acontecendo “por causa do meu trabalho”.

5. Qualquer erro de um filho meu é considerado desvio grave de comportamento – um atraso na escola, alguma advertência sobre conversar demais com os colegas, uma nota baixa, um palavrão. Dúvidas e comportamentos inerentes à faixa etária à qual pertencem são imediatamente problematizadas, como se aos filhos de trabalhadoras sexuais não fosse permitido passar pelos questionamentos típicos da transição para a adolescência, ou mesmo alguma revolta (comuns e bem aceitos como ‘coisa da idade’ em filhos de todas as outras pessoas).

* Lembro de uma ocasião em que comentei com uma amiga sobre um certo desinteresse que eu havia percebido em minha filha adolescente por sexo. Prontamente ela me respondeu: “Mas é óbvio, o teu trabalho a afeta, por causa dele ela não gosta de sexo.” Imediatamente condenou a vida sexual ainda não existente da minha filha ao fracasso, simplesmente por ela ser filha de uma trabalhadora sexual. Felizmente ela estava enganada – e eu aprendi a não confiar tanto nas pessoas ‘livres de preconceitos’.

6. Trata meus filhos como fruto acidental do meu trabalho. Mesmo que eu tenha sido casada com o pai deles durante anos e anos…

7. Perguntam como é que meu ex-marido aceitava meu trabalho. Mesmo que eu já tenha contado que não o exercia enquanto éramos casados. Não entendem que eu possa ter tido alguma vida onde eu não fosse trabalhadora sexual, ou mesmo ter tido outros trabalhos. E também não se dão conta do quão invasiva é esse tipo de pergunta e que eu não sou obrigada, por ser puta, a falar o tempo todo abertamente da minha vida sexual e emocional. Que, aliás, é MINHA.

8. Jamais se engajou em campanha pela legalização do aborto, sequer toca no tema, mas apela pra mim quando precisa saber onde fica uma clínica de aborto, e não acredita quando digo que não conheço nenhuma. Afinal de contas, eu trabalho com sexo! Como assim, nunca engravidei acidentalmente?

9. Correm pra mim quando desejam drogas ilícitas. Afinal de contas, sou uma prostituta! Como assim, prostitutas não revendem drogas ilícitas? Mas nem um baseadinho, um Desobesi-Mzinho, nada?

* Aliás, tem cliente que desmarca encontro quando a garota se recusa a levar drogas – mas isso já é outra história.

10. Amiga diz que me ama por que “consegue enxergar a doce mulher que eu sou por trás da prostituta”. Que nem pareço uma prostituta – mas olha só: eu sou! Não faça com que eu me sinta mal por isso. Prostitutas são, ou podem ser, sexyes, vulgares, meigas, atenciosas, boas conselheiras, etc – cada coisa em seu momento, e sem precisar abrir mão de ser nenhuma dessas coisas.

11. Pede minha opinião sobre determinado assunto envolvendo sexo. Dou a minha opinião. Diz que quer minha  opinião como mulher, não como profissional. Oi? Em que momento deixei de ser uma mulher pra você?

12. A todo o momento lembra de como é triste eu PRECISAR me prostituir, e lembra que é uma mulher feliz por que nunca PRECISOU se prostituir. “Nada contra.”

13. Insiste pra que eu conte sobre a violência que sofro em meu trabalho diariamente. Mesmo que eu já tenha contado mil vezes que nunca sofri violência em meu trabalho (Nunca se sabe, vai que eu tenha sofrido algo desde a última vez que me perguntou).

14. Quer saber quando é que eu vou trabalhar num emprego digno que me valorize e permita desenvolver meu verdadeiro potencial. Tipo caixa do Walmart ou atendente de lanchonete.

15. Me convida pra jantar com a amiga que acaba de chegar de volta ao Brasil depois do doutorado na França. Passa o tempo todo com medo que eu fale algo que deixe a moça mesmo que de longe intuir minha profissão.

16. Se surpreende ao saber que eu mesma construí meu site, edito minhas fotos, cuido de minha publicidade.

17. Lamenta que eu tenha que sair com caras que me tratam mal mesmo eu dizendo que me tratam bem.

18. Insiste em dizer que sexo sem sentimento é algo horroroso e nenhuma mulher quer ser esquecida no dia seguinte – mesmo eu dizendo que mulheres são diferentes e que algumas não se importam em ser esquecidas no dia seguinte. E até preferem (normalmente prefiro).

19. Vê uma diferença imensa entre passar a noite com um cara que conheceu na balada e passar alguns momentos com um cara que eu conheci na internet e vai me pagar por estes momentos.

20. Fala sobre como os caras que pagam por sexo são escrotos – sem se dar conta de que a maioria dos homens paga, pagou ou já pensou em pagar por sexo. E não é isso, isoladamente, que os torna mais ou menos escrotos.