Trabalhadoras resistem a projeto que leva modelo nórdico ao Reino Unido
Por Sophie K. Rosa para Novara Media
No dia 9 de dezembro, o Parlamento britânico aceitou considerar um projeto de lei que propõe que o Reino Unido adote o “modelo nórdico” para sua legislação sobre trabalho sexual. O projeto de lei, apresentado pela deputada Diana Johnson, do Partido Trabalhista, enfrenta a oposição das trabalhadoras sexuais e de organizações como Anistia Internacional, a entidade de redução de danos Release e a Women Against Rape, que argumentam que o modelo legal que ele propõe é orientado por ideologia, e não por evidências, e põe vidas de trabalhadoras em risco.
O projeto de lei de Johnson – coassinado por outras deputadas trabalhistas, como Stella Creasy, Sarah Champion e Rosie Duffield, e com oposição da deputada Lyn Brown, também trabalhista – criminaliza o pagamento por sexo e descriminaliza a venda de sexo, impondo o que é conhecido como “modelo nórdico”, “modelo sueco” ou de “acabar com a demanda”. Esse modelo legal, atualmente em vigor na Suécia, na Noruega, na Islândia, na França, na Irlanda, no Canadá e na Irlanda do Norte, enfrenta a resistência das trabalhadoras sexuais desde sua criação, em 1999.
Teoricamente, o modelo sueco criminaliza os clientes e terceiros no comércio do sexo, deixando as trabalhadoras sexuais incólumes, e ao mesmo tempo as estimula a abandonarem o trabalho sexual. Contudo, as evidências nos países em que está em vigor mostram que ele criou condições de trabalho mais perigosas, mantendo as trabalhadoras ainda criminalizadas e negando apoio para aquelas que querem abandonar esse setor de atividade.
Ao criminalizar o pagamento por sexo, o projeto de Johnson encolheria a oferta de clientes para as trabalhadoras sexuais, o que reduziria a liberdade delas para recusar clientes. “Que outras leis [esses clientes remanescentes] estariam dispostos a violar?”, pergunta Sarah, uma das organizadoras da campanha por direitos das trabalhadoras sexuais Decrim Now e integrante de um diretório local do Partido Trabalhista, referindo-se à maior violência que as trabalhadoras que vivem sob o modelo nórdico sofrem.
“Se você criminaliza os clientes, eles passam a estabelecer os termos pelos quais você vende sexo”, explica Sarah. Um cliente disposto a correr o risco de ser preso tem maior probabilidade de insistir em que uma trabalhadora entre depressa em um carro, ou que o encontro seja em um lugar inseguro ou não familiar. Demanda reduzida significa que as trabalhadoras precisam reduzir seus processos de seleção e aceitar clientes que não aceitariam em outras circunstâncias, além de rebaixar seus preços.
Um relatório da Médecins du Monde constatou que desde a introdução do modelo de “acabar com a demanda” na França, “a violência de todos os tipos cresceu: insultos nas ruas, violência física, violência sexual, roubos e assaltos armados em locais de trabalho”.
O relatório também concluiu que essas leis “tiveram um efeito danoso sobre a segurança, a saúde e as condições de vida em geral das trabalhadoras sexuais” e “aumentaram o empobrecimento, especialmente entre pessoas que já viviam precariamente, ou seja, imigrantes indocumentadas que trabalham nas ruas”.
“As pessoas mais afetadas pelo modelo nórdico são as pessoas que têm menos opções”, disse Sarah. “Suas fontes de renda estão sendo tomadas e elas não têm como substituir isso, de modo que vão correr mais riscos, porque trabalham em condições tão precárias. É o que vemos para trabalhadores precários no mundo todo.”
O projeto também criminalizaria o que a deputada Johnson chama de “pontos de cafetinagem” (“pimping sites”), que na verdade são sites na internet usados principalmente pelas trabalhadoras sexuais para encontrar e selecionar independentemente seus clientes, sem depender de gerentes ou terceiros que as explorem. “Está comprovado que a publicidade online dá mais poder às trabalhadoras”, disse Sarah; ela acrescentou que essa parte do projeto de lei também impediria as trabalhadoras de se organizarem coletivamente para criar suas próprias plataformas na internet.
Nicki Adams, do English Collective of Prostitutes, disse acreditar que o projeto de Johnson representa uma ideologia anti-trabalho sexual que é danosa – mais preocupada com a erradicação do comércio de sexo com base em argumentos morais do que em melhorar as condições materiais das mulheres – e que “tradicionalmente vem sendo liderado por uma aliança profana entre políticos feministas e cristãos fundamentalistas”. Adams acrescentou que na Irlanda do Norte “foi o reacionário, homofóbico e antiaborto Lorde Morrow, apoiado por ativistas feministas, que apresentou o projeto da Lei sobre Exploração e Tráfico Humano”, que criminalizou os clientes.
De fato, no discurso em que apresentou seu projeto de lei no Parlamento, Johnson se referiu repetidas vezes a “tráfico” e “exploração”, sem traçar qualquer distinção entre trabalho forçado, trabalho de pessoas traficadas e trabalho sexual consensual, além de desconsiderar como as condições materiais das mulheres significam que elas podem optar por atravessar fronteiras ou exercer trabalho sexual. “A justificativa para esse projeto de lei é a de que o tráfico de pessoas é muito grande e pode ser reduzido se os clientes das trabalhadoras sexuais forem criminalizados. Isso não é verdade”, disse Adams.
Na verdade, ela acrescenta, “o tráfico é alimentado pela pobreza e pela determinação das mulheres em escapar dela”, ao lado de “um ambiente hostil à imigração, que torna impossível para a maioria dos imigrantes atravessar fronteiras sem ajuda”. Leis contra o tráfico de pessoas já existem no Reino Unido e na prática, “elas vêm sendo usadas para justificar operações policiais contra trabalhadoras sexuais imigrantes, com prisões e deportações, e isso distorce a percepção pública sobre até que ponto a prostituição resulta diretamente do tráfico”, afirmou Adams.
O projeto de lei também não trata das razões mais prementes pelas quais mulheres exercem o trabalho sexual: para ganhar dinheiro suficiente para sobreviver e cuidar de seus filhos. Adams disse que as “feministas” que defendem o modelo nórdico “marcam a prostituição como unicamente degradante, parecendo ignorar a degradação e a humilhação que as mulheres encaram quando têm que pular refeições, pedir esmolas ou se submeter a um parceiro violento para que possam manter um teto sobre suas cabeças”.
A pandemia de covid-19 levou mais mulheres a entrarem para o trabalho sexual, ao mesmo tempo que a base de clientes encolheu; as trabalhadoras têm relatado que tanto a pobreza como a violência no trabalho cresceram.
A trabalhadora sexual Anna (nome mudado para preservar sua privacidade), baseada em Londres, disse que ela e outras trabalhadoras sexuais têm enfrentado clientes mais violentos neste ano. A National Ugly Mugs, uma organização contra a violência na qual as trabalhadoras sexuais podem denunciar incidentes, envia textos de alerta para as trabalhadoras, e Anna contou que só nas últimas 24 horas ela recebeu várias mensagens sobre “trabalhadoras sendo assaltadas com armas” e estupradas. “Isso já é perigoso, e eu estou apavorada sobre quão piores as coisas vão ficar se esse projeto se tornar lei.”
Anna também está preocupada com o impacto das consequências econômicas da Brexit [a saída do Reino Unido da União Europeia] sobre as trabalhadoras sexuais. Com a falta de outras opções de trabalho e apoio insuficiente do Estado, é provável que mais mulheres entrem para o trabalho sexual. Nesse contexto, o projeto de lei traz uma sensação de “sufocamento” e parece estar dizendo às trabalhadoras que “nós não estamos nem aí com a sua segurança”, disse Anna.
Em seu discurso, Johnson citou avaliações negativas de trabalhadoras sexuais por clientes e se referiu a “mulheres sendo estupradas e abusadas por lucro”, tentando, aparentemente, provocar indignação com o setor de sexo comercial com base em argumentos morais ou “feministas”. Sarah acredita que essa retórica passa por cima das experiências vividas pelas trabalhadoras sexuais e as posiciona como “dano colateral dispensável em alguma guerra para punir ‘homens maus’.”
“Nenhuma trabalhadora sexual que eu conheço tem simpatia pelos clientes, mas aqueles que apoiam o projeto de Johnson não deveriam deixar sua raiva dos clientes se sobrepor à necessidade das trabalhadoras sexuais de trabalhar em segurança; a criminalização da fonte de renda das mulheres e de seus locais de trabalho não vai impedir que homens continuem a escrever coisas abusivas sobre mulheres na internet.”
Anna, que é integrante do sindicato United Sex Workers, quer que os políticos ouçam as reivindicações das trabalhadoras. “Fico muito irritada com o fato de que pessoas que não têm a menor ideia do que é fazer trabalho sexual estão tomando decisões que vão me colocar em perigo, a mim e a pessoas que eu amo.” Ela acrescenta que os políticos deveriam “ouvir as trabalhadoras, porque nós sabemos do que precisamos para nos sentirmos seguras” e ouvir também organismos como a Anistia Internacional, a Organização Mundial da Saúde e o Human Rights Watch; todas elas apoiam a descriminação de todo o setor de sexo comercial.
Trabalhadoras sexuais e seus aliados estão convocando as pessoas a mandarem e-mails para os membros do Parlamento britânico com o pedido de que eles se oponham ao projeto, que terá sua segunda leitura no dia 29 de janeiro de 2021 [podendo passar em seguida à votação em plenário]. Membros do Partido Trabalhista e deputados que dizem se preocupar com abusos e violência contra mulheres deveriam apoiar a luta das trabalhadoras sexuais por direitos trabalhistas”, disse Adams, “ao invés de apoiar um projeto que vai fazer crescer a violência contra trabalhadoras sexuais e aumentar o poder da polícia contra um setor criminalizado das mulheres”.
Enquanto as trabalhadoras sexuais se mobilizam para combater esse projeto, Sarah disse acreditar que “é crucial a solidariedade de grupos diferentes que também são penalizados” pelo Estado. “É muito importante que não tratemos as trabalhadoras sexuais como ‘outros’. A luta das trabalhadoras sexuais é a luta dos migrantes, é a luta das mulheres, é a luta dos incapacitados.”
“As ‘feministas’ pró-criminalização que pertencem ao establishment não nos representam. A escolha delas de ficar do lado do Estado e aumentar os poderes da polícia contra nós, enquanto elas ficam só olhando quando somos empobrecidas e tornadas mais vulneráveis à violência, não é um feminismo verdadeiro, absolutamente”, disse Adams.
Sophie K. Rosa (@sophiekrosa) é uma jornalista freelancer que escreve para Novara Media, The Guardian, Vice, Open Democracy, CNN, Al Jazeera e Buzzfeed.