O meio virtual e a visibilidade do trabalho sexual exercido por homens: o que ganhamos com isso?
Debora Barcellos
Nunca é demais iniciar nossos textos aqui no mundoinvisível.org reafirmando, exaustivamente, que trabalho sexual é trabalho. Esse é um dos caminhos que entendemos como importantes para o combate ao estigma e à desinformação. Também é válido registrar que o trabalho sexual abarca uma série de atividades – prostituição, produção de conteúdo, atendimento virtual, serviços de acompanhante etc. Cabe dizer, entretanto, que é importante respeitar o autorreferenciamento das pessoas – o que significa que há de se levar em conta se elas se percebem ou não enquanto alguém que exerce um trabalho sexual, antes de impor o que pensamos a respeito.
É fato que estamos habituadas a projetar imagens femininas – cis ou não – quando imaginamos alguém que exerce o trabalho sexual. Isso porque a prostituição exercida por mulheres é o trabalho sexual com maior relevo ao longo da história. Entretanto, especialmente com o dinamismo crescente e cada vez mais diverso do mundo virtual, tem se tornado cada vez mais comum encontrar, seja em redes sociais ou plataformas de anúncio, perfis de homens que também prestam serviços sexuais.
Eu acompanho já há algum tempo os perfis do Gabe Spec no Instagram. Gabe é profissional do sexo, uma das principais vozes e embaixador da plataforma de acompanhantes Fatal Model. Interessada em dialogar com ele no âmbito de minha pesquisa de doutorado, enviei um direct e passei a interagir com seus stories, que a propósito, são muito interessantes e elaborados com conteúdo variado, que transita entre papos sérios, respostas a perguntas de seguidores, performances divertidas, reflexões e por aí vai. O retorno do Gabe e o agendamento de uma entrevista vieram quando comentei um story em que ele compartilhava um reel do perfil @avosdarazao, das criadoras de conteúdo Gilda, de 81 anos, e Sonia, de 85. Nesse vídeo as duas respondiam a um apresentador a respeito da vida sexual na fase de vida em que se encontram. Sônia apontou a possibilidade e a praticidade de, na idade dela, contratar um garoto de programa quando sente vontade de fazer sexo. O entrevistador Fernando Rocha comentou a resposta como “uma opção válida” e complementou – “os homens sabem disso já há algum tempo”.
Bom seria se em todos os espaços isso pudesse ser debatido com honestidade e tranquilidade. Mas sabemos que o mundo não funciona desse jeito e que muita gente não está preparada para essa conversa. É um assunto bastante complexo, com várias camadas a serem analisadas e pensadas, de maneira que se torna uma tarefa difícil e delicada falar sobre isso brevemente. Quando eu digo da complexidade desse debate me refiro, inclusive, às perspectivas não binárias, tanto de gênero quanto de sexualidade. Mas como o meu ponto de partida é a prostituição e sua construção histórica em torno de um trabalho exercido explícita e majoritariamente por mulheres, e como o ponto em que quero chegar é na crescente visibilidade dos homens trabalhadores sexuais, conto com a compreensão de quem me lê. Vamos lá!
Quanto a falar sobre mulheres num texto cujo título remete aos homens, justifico se tratar de um exercício pertinente, ancorada numa afirmação de Gayle Rubin em seu clássico texto “Pensando o sexo: notas para uma teoria radical das políticas da sexualidade”. No início da conclusão, a autora diz assim: “Como o gênero, a sexualidade é política. É organizada em sistemas de poder os quais recompensam e encorajam alguns indivíduos e atividades ao passo em que punem e suprimem outros”. Me restringindo às expressões de gênero feminina e masculina no mercado do sexo, é importante refletirmos sobre as possibilidades de maneiras diferenciadas com que sociedade pode lidar com as mulheres e com os homens nesse contexto. De volta ao Gabe, em nosso bate papo que aconteceu dias atrás, ele me disse que quanto ao fato de assumir publicamente o trabalho de acompanhante, torna-se notável que as pessoas têm muito mais curiosidade do que repulsa. Essa repulsa é um sentimento bastante comum dirigido às mulheres que atuam na profissão. Num sentido prático e pensando numa relação direta entre sentimentos e atitudes, a repulsa é combustível para o estigma e preconceito. De maneira que o argumento de Gayle Rubin também é produtivo para pensarmos que até mesmo no campo do trabalho sexual os homens são mais encorajados do que as mulheres. Como o Gabe mesmo me disse, ele se sente privilegiado nesse sentido.
Concordo com Monique Prada quando ela diz que o trabalho sexual não é necessariamente empoderador para as mulheres, apesar de muitas profissionais do sexo o considerarem dessa maneira. Mas ele é, na grande maioria das vezes, um meio exclusivo ou complementar de autonomia financeira e econômica, nos mais diversos estratos sociais. O que é válido tanto para homens quanto para mulheres. A grande questão nisso tudo é que em nossa sociedade ainda há muitos resquícios daquele imaginário de mulher ideal, designada à esfera doméstica – os papeis de esposa e mãe dedicada, geralmente vinculados, permanecem alimentando imaginários e expectativas em alguma medida. Ainda que nas últimas décadas as mulheres, de maneira geral, tenham paulatinamente conquistado espaços e sido aceitas nos trabalhos fora da esfera do lar, o trabalho sexual não está no escopo dos trabalhos socialmente aceitos.
Tudo isso para dizer que penso ser bastante positivo o aumento da visibilidade dos homens no trabalho sexual, além de potencialmente produtivo para o ativismo. Por dois motivos: primeiro, para que todas as mulheres possam contratar os serviços desses homens, se e quando desejarem. Afinal, isso sempre foi autorizado aos nossos pais, irmãos, primos, tios, maridos, avôs, amigos, filhos, não é mesmo? Segundo, para que pensemos em estratégias para tirar proveito do privilégio masculino no exercício do mercado adulto. Como? Por exemplo, ampliando os espaços e os diálogos sobre a legitimidade do trabalho sexual; somando forças ao combate ao estigma; amplificando ainda mais no campo político as vozes que já reivindicam direitos e atendimento a demandas específicas das pessoas que exercem o trabalho sexual; dentre outras coisas.
Quero deixar registrado o meu agradecimento ao Gabe pela generosidade de ter tirado um tempo para conversar comigo e por ter me inspirado a refletir para muito além dos interesses primeiros da minha pesquisa – que é dedicada a pensar sobre as relações familiares. E agradecer, também, por ter autorizado mencioná-lo nesse texto.
Para quem quiser conhecer o Gabe um pouco mais – e eu recomendo – segue o link de um texto dele no blog da Fatal Model:
Debora Barcellos é mãe de duas crianças, aliada do putativismo e candidata ao doutoramento em Antropologia pela Universidade de Brasília.
No trabalho de pesquisa atual se interessa pelas dinâmicas familiares entre trabalhadoras e trabalhadores sexuais, com foco nas maternidades.
Mineira do quadrilátero ferrífero e habitante do Vale do Jequitinhonha.