NY Post expõe paramédica como trabalhadora sexual
Por Renato Martins
No dia 12 de dezembro, o jornal de direita New York Post publicou uma reportagem na qual expõe uma paramédica como trabalhadora sexual. O objetivo da publicação da reportagem não ficou claro (o NY Post não respondeu a pedidos de esclarecimento feitos por outros órgãos de imprensa), mas ela provocou indignação na comunidade médica, em setores da imprensa liberal dos Estados Unidos, na comunidade de trabalhadoras sexuais e até de uma deputada federal do Partido Democrata. O tiro saiu pela culatra.
Lauren Kwei, que hoje tem 23 anos, começou a trabalhar como técnica em emergências médicas (EMT) no Departamento de Bombeiros de Nova York (FDNY) em 2018; em fevereiro deste ano, já em meio à pandemia de covid-19, ela concluiu o curso de paramédica, posição que envolve mais responsabilidade e paga melhor. E desde novembro do ano passado, passou a publicar fotos sensuais na plataforma OnlyFans, para complementar seu salário.
Na segunda-feira, dia 14, Madeleine Aggeler escreveu na New York Magazine que “o artigo [do NY Post] é uma leitura confusa e desagradável, Ele detalha a altura e o peso da paramédica e traz algumas das fotos dela no OnlyFans. Ele cita um paramédico veterano do FDNY que ao mesmo tempo reconhece que muitos paramédicos precisam de vários empregos para sobreviver e humilha a pessoa que é tema do artigo por sua escolha de trabalho paralelo. O artigo conclui notando que os empregadores da paramédica proíbem ‘conduta imprópria no trabalho ou fora dele’ e que o Post havia procurado os empregadores várias vezes em busca de comentários. A implicação parece clara – que a escolha da mulher, de engajar-se em um segundo emprego no setor sexual, deveria, de alguma maneira, colocar em perigo seu emprego principal –, mas ele nunca deixa claro por que o Post achou que essa história valia a pena como reportagem”.
Reportagem da Rolling Stone nota que o OnlyFans “explodiu em popularidade durante a pandemia. Como uma plataforma de conteúdo por assinatura que permite a influenciadores e criadores de conteúdo monetizarem seus conteúdos, o OnlyFans é usado principalmente por trabalhadoras sexuais”. Segundo a revista, “à medida que o OnlyFans ganhou popularidade, não é incomum que tabloides publiquem histórias de pessoas que não são trabalhadoras sexuais e se voltam para essa plataforma como ajuda para pagar as contas (também não é incomum que profissionais da área de saúde, particularmente, abram contas no OnlyFans por causa dos salários baixos de sua profissão, como o BuzzFeed relatou anteriormente)”.
Ao NY Post, Lauren Kwei disse que “o que eu faço em meu tempo livre é assunto meu. Isso não afeta como eu cuido dos meus pacientes. Eu sei que quando estou trabalhando sou uma paramédica. Acho que sou muito boa no meu trabalho. Há muitas pessoas que são profissionais médicas e que têm todo o direito de fazer o que quiserem com seus corpos. Não faço aquilo no meu trabalho. Trabalhadores da área de saúde não ganham muito dinheiro. E eu não sou a única tentando pagar minhas despesas”.
Segundo o Daily Beast, um amigo de Kwei lançou uma campanha no GoFundMe – que em dois dias já havia arrecadado US$ 33 mil para ajudá-la, caso ela perca o emprego na empresa SeniorCare. Nessa página, Kwei escreveu que o repórter Dean Balsamini, do NY Post, chegou a entrar em contato com a mãe e o empregador dela. “Eu implorei para permanecer anônima. Ele realmente não se importou”, acrescentou.
Ela também disse que embora soubesse que não precisava se explicar, preferiu fazê-lo porque “isso me ajuda a lembrar que eu não mereço ser tratada dessa maneira, ou que falem de mim dessa maneira. Sei que não fiz nada errado e que não tenho nada de que me envergonhar”.
De acordo com a TeenVogue, Kwei também disse que “nos últimos três dias, minha vida e detalhes íntimos dela foram tornados públicos para milhões de estranhos lerem e julgarem. Quero deixar bem claro: eu não queria que o NY Post publicasse esse artigo, muito menos que usasse meu nome”.
“Então esse é o New York Post, expondo uma mulher que não consegue ganhar dinheiro suficiente salvando VIDAS para existir. Então ela tem um segundo emprego – e agora estão tentando fazê-la ser demitida do primeiro, porque não passam de seres humanos de merda”, reagiu no Twitter a trabalhadora sexual e escritora Mistress Matisse.
Entra em cena a deputada federal Alexandria Ocasio-Cortez (Democrata-NY), que talvez seja a política mais à esquerda no Congresso dos EUA. “Deixem ela em paz. A manchete realmente escandalosa aqui é ‘Médicos nos Estados Unidos precisam de dois empregos para sobreviver”, postou a deputada no Twitter.
Mais do que isso: a deputada, conhecida como AOC, também tuitou que “Trabalho sexual é trabalho. O governo federal não fez quase nada para ajudar as pessoas, por meses. Precisamos aprovar cheques de estímulo, renda universal, alívio para pequenas empresas, financiamento a hospitais etc. Mantenham o foco na vergonha aqui, e não em marginalizar pessoas que sobrevivem à pandemia sem ajuda”.
Posso estar enganado, mas acho que é a primeira vez que um membro do Congresso dos EUA pronuncia as palavras “trabalho sexual é trabalho”. Isso pode ser um sinal muito positivo para a comunidade de trabalhadoras sexuais nos EUA, que enfrenta não só a miséria provocada pela pandemia, mas condições de vida agravadas pelas políticas do governo Trump e pelas leis de criminalização FOSTA/SESTA.