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Esquerda tradicional e conservadorismo: é preciso superar o trabalho sexual no comunismo?

De Sophia Rivera

Recentemente, acompanhamos o caso em que o jornalista do ICL Notícias Eduardo Moreira direcionou ataques à plataforma de acompanhantes Fatal Model, durante a transmissão de seu programa ao vivo no Youtube. Momento em que o mesmo tece críticas à publicização dessas plataformas em programas e/ou eventos de classificação livre. Além disso, o jornalista faz comentários sobre os valores cobrados pelas trabalhadoras/es em seus anúncios, e ainda realiza afirmativas controversas sobre os impactos desse tipo de conteúdo e/ou serviço nas crianças, de modo que Eduardo equipara os crimes de abuso, e sobrepõe a culpa das mazelas estruturais do patriarcado de cultura machista ao acesso à prostituição virtual e/ou presencial. Inclusive, demonstra “preocupação” com a objetificação da mulher, defendendo a noção de que “proteger as crianças” da exposição às propagandas de conteúdo adulto, seria uma maneira de impedir a formação de abusadores e/ou agressores feminicídas, em potencial.

Não por menos, a situação repercute após a Fatal Model encaminhar um caminhão para a frente da sede do ICL, com a seguinte frase no painel de led: “O que mata é o preconceito! Respeito, segurança e dignidade”, em protesto aos ataques contraditórios e equivocados feitos não somente à empresa, mas, principalmente, à categoria de trabalhadoras/es sexuais. E para tanto, ninguém além da própria categoria de trabalhadoras/es sexuais organizada, através das redes sociais e demais veículos midiáticos, contestou tais ataques a partir da percepção daquelas/es que vivenciam o cotidiano da prostituição. Pelo contrário, os noticiários da mídia burguesa acataram as afirmativas do jornalista, assim como veículos de comunicação sindical como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e demais portais de comunicação independente, à esquerda, se puseram em apoio aos trabalhadores/as do ICL Notícias. Uma unidade que se forma, de modo a acolher o sensacionalismo disseminado, sem sequer promover um espaço de troca com profissionais que vivem da ocupação com o trabalho sexual. Por fim, aquilo que se pinta como tentativa de coação, nada mais foi que palavras que caracterizam as reivindicações históricas, exaustivas, da categoria de prostitutas/os.

As perguntas que ficam são: será mesmo uma preocupação com o bem-estar das mulheridades ou mero ataque às pessoas que trabalham com o sexo? Os fatos colocados são verídicos ou cortina de fumaça aos reais problemas do matrimônio e da sociabilidade capitalista e patriarcal?

Conservadorismo moral e a esquerda brasileira

Não bastassem os ataques conferidos pelo jornalista Eduardo Moreira, emerge deste conflito, para conhecimento, o PL. 3660/24 de autoria do deputado Pastor Henrique Vieira (Psol/RJ), em que o autor do projeto, coincidentemente, propõe proibir a veiculação de publicidade de serviços de prostituição e outros serviços sexuais em competições desportivas. Aliás, as justificativas se equiparam às colocações feitas pelo jornalista; porém, o PL, incumbido de dados distorcidos da realidade, toma proporções ainda piores quanto aos ataques lançados à categoria de trabalhadoras/es sexuais.

As justificativas postas ao projeto de lei 3660/24, têm como base argumentações moralistas, que de nada se preocupam com as condições de trabalho, garantia de direitos e segurança àquelas pessoas que exercem o trabalho sexual, pora exemplo, os preços abusivos cobrados dessas/es profissionais para exercer a sua função; a cooptação dos espaços de trabalho por cafetinas/ões e redes de trabalho mal-pago e insalubres, como alguns cabarés ou casas de massagem; além dos trabalhos desassistidos e inseguros nas ruas etc.

Coloca-se em questão o “constrangimento às famílias” que podem estar assistindo ao jogo do “time do coração”, ou ocupando um espaço de espetáculos e/ou diversão, e que, uma vez exposta a publicidade da plataforma de acompanhantes e/ou serviço +18, crianças e adolescentes poderiam ser estimulados a acessar os sítios eletrônicos dessas empresas. Ora, desde quando a pornografia precisou utilizar-se de veículos de publicidade próprios para ser estimulada?

E não acaba por aí, promove-se, de maneira abstrata, a culpa do trabalho sexual pelos casos de exploração sexual infantil e tráfico global de mulheres e crianças. A constar:

“Ora, a exposição a material pornográfico a crianças e adolescentes consiste em uma forma de violência sexual. Segundo a Organização Mundial da Saúde, dos 204 milhões de crianças com menos de 18 anos, 9,6% sofrem exploração sexual, 22,9% são vítimas de abuso físico e 29,1% têm danos emocionais. Os dados mostram que, a cada 24 horas, 320 crianças e adolescentes são explorados sexualmente no Brasil – no entanto, esse número pode ser ainda maior, já que apenas 7 em cada 100 casos são denunciados. O estudo ainda esclarece que 75% das vítimas são meninas e, em sua maioria, negras […] O dia 23 de setembro marca o Dia Internacional contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças. A data é um momento de reflexão e de ação global, chamando a atenção para questões profundamente preocupantes que afetam milhões de pessoas em todo o mundo” (PL 3660/24).

É visível a distorção colocada como uma leitura da realidade, uma vez que não se considera, no cenário dos abusos sexuais às crianças e adolescentes, que “a maioria dos casos de violência sexual ocorre na residência da vítima e, para os casos em que há informações sobre a autoria dos crimes, 86% dos autores eram conhecidos das vítimas […] sendo possível verificar certa estabilidade no padrão de distribuição das vítimas de 0 a 9 anos de idade” (Unicef, 2021, p. 6-17). Nesse caso, qual seria a relação entre o trabalho sexual e o abuso de crianças e adolescentes, quando estas violações não estão ocorrendo nas ruas e/ou lugares ocupados pela prostituição?

Adiante, não é novo que para os casos de exploração sexual e tráfico de mulheres e crianças há uma rede bem estruturada e complexa a ser compreendida neste debate. Assim como, se faz indispensável considerar o perfil e a margem de idade dessas pessoas, as situações e dinâmicas em que ocorrem as brechas para que o tráfico e/ou exploração ocorra; além das circunstâncias que podem vir a propiciar o sequestro dessas mulheres e crianças a essas condições criminosas. Cabe aqui considerar que o projeto citado não delineia suas afirmativas com dados específicos que deem embasamento às suas respectivas acusações, e, portanto, não passa de uma estratégia sensacionalista de ataque às trabalhadoras/es sexuais. Tal conduta, além de irresponsável, por desconsiderar estudos especializados nas temáticas levantadas, me parece ter um ar de hipocrisia, quando nas críticas feitas ao trabalho sexual, à exploração sexual ou tráfico de mulheres e crianças, sequer considera as pessoas trans e travestis, em que “meninas são expulsas de casa, entre 13 e 15 anos de idade” (ANTRA, 2024, p.57), e, uma vez destituídas de suas redes de apoio e institucionais, são naturalizadas ainda nesta idade nas ruas de prostituição. Por este motivo, pergunto-me: onde está a indignação quando se trata desta comunidade e a referida temática da exploração e/ou tráfico sexual de crianças e adolescentes?

Trata-se aqui de qualificar o debate e considerar as múltiplas experiências e dinâmicas das relações sociais cotidianas com responsabilidade. Mas também, não cabe tecer esta crítica com intuito de legitimar, enquanto caminho possível, a direita tradicional ou a extrema-direita, incumbidas de seus projetos necropolíticos, neoliberais, subordinados a ordem deletéria do capital. Posto isso, propõe-se uma chamada à reatualização por parte dos setores da esquerda, em especial da esquerda radical, que precisa estar em compromisso com as frações da classe trabalhadora altamente desamparadas. E, não por menos, além de organizar e considerar seus interesses, a partir das necessidades apresentadas, também adicionar ao projeto de emancipação política e humana, de transformação para a ordem comunista, outras táticas de enfrentamento e luta, em detrimento do conservadorismo e reacionarismo fascista da sociabilidade capitalista.


Será a prostituição um meio de trabalho a se considerar no comunismo? Ou unicamente afetação do capitalismo, sobretudo, à vida das mulheridades?

Distante da intenção de defesa do empresariado patronal e/ou dos efeitos deletérios do modo de produção e reprodução do trabalho e da vida no capitalismo, propõe-se potencializar a luta das esquerdas, a partir da reatualização e questionamento de pensamentos controversos que acompanham parte de nós. E que, portanto, podem acabar por reiterar a exclusão e as desigualdades, atrapalhando o avançar da retomada de consciência da classe para si, e a consequente unidade entre os setores de luta à esquerda.

Não se trata de um chamado acrítico, mas, prevendo os perigos de nos perdermos ideologicamente, pelas percepções cristalizadas em determinados períodos históricos, e que neste caso acabam por flertar com o que grupos religiosos e/ou de “feministas” radicais, na atualidade, têm defendido como pauta anti-gênero ou anti-trans, que de nada agrega às mulheridades, tampouco aos demais setores da sociedade. Pelo contrário, revela-se desse conglomerado, em escala global, iniciativas que além de propor projetos fascistas, de perseguição, negação de direitos e morte aos grupos minorizados, como a população trans e travesti, também negociam com a classe vigente pela manutenção do status quo, da dinâmica burguesa das relações sociais e de trabalho.

É comum encontrarmos em parte das literaturas de feministas marxianas comunistas, como da Alexandra Kollontai, a disseminação de uma noção contraditória sobre a prostituição, por momentos pautadas por um certo essencialismo feminino e expectativa positivista das relações, do que a pensadora irá denominar “relações entre os sexos”. Na obra “Comunismo e Família“, escrita em 1920 por Kollontai, se identifica a seguinte expectativa quando superada a ordem capitalista:

“Uma vez que tenham sido transformadas as condições de trabalho, uma vez que tenha-se aumentado a segurança material da mulher trabalhadora, uma vez que tenha desaparecido o matrimônio tal como consagrava a Igreja – isso é, o chamado matrimônio indissolúvel, que no fundo não era mais que uma mera fraude-, uma vez que esse matrimônio seja substituído pela união livre e honesta de homens e mulheres que se amam e são camaradas, haverá começado a desaparecer outra calamidade horrorosa que mancha a humanidade e cujo peso recai por inteiro sobre a fome da mulher trabalhadora: a prostituição […] Portanto, a mulher trabalhadora deve deixar de se preocupar com o fato de que a família tal como está constituída hoje está fadada ao desaparecimento. Seria muito melhor saudar com alegria a aurora de uma nova sociedade que liberará a mulher da servidão doméstica, que aliviará o peso da maternidade para a mulher, uma sociedade em que, finalmente, veremos desaparecer a mais terrível das maldições que pesam sobre a mulher: a prostituição.” (Disponível no Arquivo Marxista na Internet).

Em vista de tal expectativa, considero que na ordem capitalista, o trabalho sexual, assim como as demais ocupações que são comumente consideradas trabalho, está subordinado às condições da dinâmica burguesa. Esta, em que a prostituição, além de tomar localização importante para sustentação das contradições das noções de matrimônio, também revela um espaço de aglomeração de um exército de reserva pauperizado e desassistido, sendo parte desse exército submetida à prostituição compulsória, como no caso das pessoas trans e travestis. Entretanto, isso não quer dizer que mesmo reconhecidas as contradições da sociabilidade capitalista, não tenhamos uma fração de pessoas que deliberadamente se reconhecem nesse espaço de trabalho e convivem bem nessa escolha e/ou acaso que lhes apresentou tal ocupação. Desse modo, prostituição coloca-se enquanto problema quando compulsória, quando principalmente identidades femininas são alijadas à subalternidade, ao matrimônio e à prostituição enquanto caminhos inegociáveis para sobreviver no regime burguês.

Ademais, Kollontai em sua obra “A Nova Mulher e a Moral Sexual”, de 1918, tece críticas profundas à prostituição, e ainda que eu considere o momento histórico em que se escreve a sua proposição, são evidentes os flertes com a própria concepção burguesa colonial, que apaga epistemologicamente às experiências não-brancas e não-cisgênero, mesmo que a intenção central seja criticar o modelo burguês das relações. De acordo com a autora,

“As fileiras das trabalhadoras são sempre formadas pelas mais fortes e resistentes, pelas mulheres de espírito mais disciplinado. As de natureza frágil e passiva continuam fortemente vinculadas ao lar. Se as necessidades materiais as arrancam do lar para lança-las na tormenta da vida, essas mulheres deixam-se levar pelo caminho fácil da prostituição legal ou ilegal, casam-se por conveniência ou lançam-se à rua” (2000, p. 18-19).

As leituras tecidas por Alexandra Kollontai sobre as mazelas do capitalismo são pertinentes. Na medida em que parcela das identidades femininas é submetida ao trabalho não-pago nos matrimônios e as prostitutas se coloquem fora desse espaço e cobrem por um trabalho específico, ambas as ocupações, ao modo burguês, estarão expostas às violências e violações decorrentes do tal patriarcado, sem a justiça e autonomia necessárias para romper com tal sintoma venéreo desse tipo de organização social e econômica. No entanto, que mulher é essa que está presa ao lar, quando na experiência de mulheres negras a história da subserviência é anterior à experiência do matrimônio? Seria honesto chamar de frágeis e submissas aquelas que a vida lhes vendeu aos matrimônios, não necessariamente para casar, mas para servir? Ou ainda considerar enquanto sujeitas acríticas, destituídas do saber, aquelas que sequer foram consideradas nas redes comunitárias e/ou nas frentes de luta? O que tem de ser superado, senão as contradições do matrimônio e da sociabilidade capitalista, racista e patriarcal?

Não há nada de errado com quem escolhe o trabalho doméstico, assim como não há nada de errado quanto a quem se identifica na prostituição; as grandes problemáticas se dão em como esses postos estão circunscritos na dinâmica burguesa. Ambos sem seguridade, ambos sem proteção, lançados à lógica exaustiva da produção, da subserviência e das insalubridades mentais e físicas!

Sem dúvida, a camaradagem é um caminho constante de busca pela construção de uma classe para si, que considere as necessidades de toda a classe trabalhadora em suas mais diversas frações. Todavia, há de nos reatualizarmos e considerar a capilarização das experiências sociais e do trabalho, que, neste caso, reconheça o trabalho sexual enquanto uma ocupação do trabalho. E que neste momento está sofrendo ataques, quando sequer temos alguma frente de esquerda defendendo o direito a melhores condições de trabalho e segurança para as/os prostitutas/os, nos corredores do poder institucional e burocrático. Ceifar determinados vícios epistêmicos, a ponto de reconhecer que atacar a plataforma, sem finalidade alguma pertinente, de modo a golpear com desonestidade uma dimensão do trabalho sexual que possibilitou a evasão de muitas travestis e mulheres cisgêneras de certos contextos hostis e de morte nas esquinas e avenidas de prostituição, seria a postura assertiva a ser tomada; o contrário, seria coligar com o conservadorismo reacionário burguês.

Destarte, que rompamos com a noção positivista e eurocêntrica burguesa, de que homens e mulheres, em uma percepção binária e colonial do gênero, fossem se dar a possibilidade deliberada de não viver mais as suas traições, seus desejos reprimidos e/ou as respectivas contradições, que tomariam um outro rumo e novas faces no campo da reprodução social de ordem comunista. Além disso, na medida em que fôssemos reorganizando o campo da produção e socializando as riquezas produzidas, de modo a libertar a classe trabalhadora de encargos impostos e passando a deixá-la se dedicar às respectivas ocupações do trabalho com as quais se identificam, dentre elas uma área de conhecimento específico, uma creche, um trabalho no campo ou o próprio trabalho doméstico, seria ingênuo achar que o trabalho sexual ficaria no plano das relações libertárias por si só. Uma vez que quem procura por sexo imediato não necessariamente terá a oportunidade de encontrá-lo a qualquer hora do dia, sem o mínimo de troca ou proximidade de outro indivíduo, sobretudo, mediante consentimento, se não através das/os trabalhadoras/es sexuais, que em paz com o consentimento sexual, se fará disponível para tal.

Afinal, esperar um certo conto de fadas, em que todos os setores da sociedade fossem conviver em plena harmonia e/ou com predisposição sexuada, ainda que superado o modo de produção desenfreado e retido nas decisões da burguesia, seria no mínimo equivocado. Mas para tanto, é preciso ter coragem, compromisso, responsabilidade e transparência com aquilo que se defende!

Referências

KOLLONTAI, Alexandra. O Comunismo e a Família. Arquivo Marxista na Internet, ano 2002. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/kollontai/1920/mes/com_fam.htm.

KOLLONTAI, Alexandra. Nova Mulher e a Moral Sexual. EXPRESSÃO POPULAR; 2ª edição, 2000. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/67835/mod_resource/content/2/Alexandra%20Kolontai.pdf.


Sophia Rivera, militante do movimento de travestis pela RATTS (Rede Autônoma de Travestis e Transexuais); escritora transfeminista materialista decolonial; graduanda em Serviço Social (UFPE) e pesquisadora de Política Social Pública de Assistência Social, Terceiro Setor e Gênero. Instagram: @transfeminista

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