Espanha: em decisão inédita, juiz determina que trabalho sexual é trabalho
Em 18 de fevereiro, um juiz de Barcelona emitiu uma sentença na qual pela primeira vez a Justiça espanhola reconhece que o trabalho sexual é trabalho e que as pessoas que o exercem têm direitos. Segue-se a reportagem do El Mundo sobre o caso, que atraiu a atenção de toda a imprensa espanhola (veja o vídeo do El Correo e o La Provincia) e internacional.
O Tribunal Social número 10 de Barcelona abriu as portas para que as trabalhadoras sexuais obtenham os direitos sociais que elas tanto exigem.
Em sentença emitida em fevereiro, o juiz Joan Agustí Maragall avalia uma petição da Tesouraria Geral da Seguridade Social contra a proprietária de um centro de massagens eróticas de Barcelona e três funcionárias do local, e considera que elas mantinham uma relação “de caráter trabalhista”. A partir dessa resolução judicial, que não é firme e contra a qual será possível recorrer perante o Tribunal Superior de Justiça da Catalunha (TSJC), as trabalhadoras sexuais que queiram terão jurisprudência para reclamar por via judicial que sejam equiparadas a qualquer outro trabalhador. Dessa forma poderá ser reconhecido seu direito a formalizar um contrato com o empresário, para que trabalhem com o registro correspondente na Seguridade Social espanhola e o recebimento de benefícios em casos de desemprego.
“As trabalhadoras codemandadas exerciam livremente, sem coação e de maneira não forçada, a prestação de serviços de prostituição por conta da empresária demandada, sob sua direção e dependência”, conclui o juiz em sua sentença, que lembra que não foram encontrados “motivos de ilícito penal, nem de lesão dos direitos fundamentais” neste caso. Neste sentido, a sentença lembra que em outubro de 2012, a Inspeção do trabalho e membros do Corpo Nacional de Polícia foram ao centro de massagens eróticas que é propriedade da demandada, que tinha anúncios na internet, e encontraram as três trabalhadoras.
Em sua declaração aos funcionários, as três prostitutas explicaram que recebem “uma comissão por cada um dos serviços que realizam, que a empresa lhes proporciona clientes por meio de publicidade e de sua página na internet, assim como os diversos materiais de trabalho: lubrificantes, camas e as demais instalações”. A atuação policial acabou em detenção da empresária e da gerente do centro e se iniciaram diligências preliminares no Juizado de Instrução número 2 de Barcelona, pelo suposto delito de exploração sexual, mas essa investigação foi arquivada semanas depois.
O ato de infração da Inspeção do Trabalho por falta de registro “em carteira” das trabalhadoras codemandadas, acabou indo para os tribunais depois de um recurso da empresária, que negava haver qualquer relação trabalhista com suas empregadas. Em sua decisão, o juiz considerou que existe uma relação trabalhista entre a proprietária do negócio e as mulheres que prestavam serviços no local – uma relação que não se limitava ao aluguel de quartos. Ficou provado que a empresária proporcionava os clientes, administrava os pagamentos e organizava os horários de trabalho das funcionárias.
A partir dessa sentença, a Tesouraria da Seguridade Social pode exigir da proprietária do centro de massagens as contribuições devidas pelo fato de as mulheres trabalharem no local, e que não foram pagas. O juiz lembra que a trabalhadora que compareceu em juízo afirmou que “exercia a prostituição de forma livre, não coagida, para além, obviamente, da situação social e econômica que pode tê-la induzido” a esse exercício. Por isso, a sentença é uma acusação ao Estado por oferecer “cobertura legal ao proxenetismo, via regulamentação administrativa e despenalização aplicativa, sem oferecer cobertura jurídica específica ao exercício da prostituição”, já que desta forma “se agravam o atentado à dignidade e à liberdade e a discriminação por motivo de sexo”.
O juiz exorta o Estado a adotar o chamado Modelo Nórdico, no qual se criminaliza a compra de serviços sexuais, e não os serviços das pessoas que exercem a prostituição. Desta forma, considera que “a atual situação de alegalidade e o não reconhecimento do caráter laboral da relação não fazem mais do que agravar enormemente o dano inquestionável à dignidade, à liberdade e à igualdade que toda relação de prostituição com intermediários implica para a imensa maioria das mulheres que a exercem”.
Essa decisão judicial é pioneira, já que até agora a jurisdição social só reconhecia as relações de anfitriã – o estímulo ao consumo de bebidas alcoólicas por parte das mulheres, em troca de receber uma comissão proporcional ao custo do consumo – e rejeitava a possibilidade de que existisse um contrato de trabalho que desse cobertura às situações de exploração lucrativa da prostituição.
A sentença do tribunal de Barcelona destaca que “para que esse contrato de trabalho possa ser considerado válido, é imprescindível que seu objeto e causa sejam lícitos”. Nesse sentido, o juiz acredita que neste caso é assim, porque as mulheres “exerciam esse trabalho livremente”, em troca de uma compensação financeira por parte da empresária.
A propósito: Hoje, 12 de março, é o 20⁰ aniversário de fundação do Colectivo Hetaira, uma organização não-governamental das trabalhadoras sexuais espanholas. Saudações, companheiras!