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Canadá: dominatrix com deficiência obtém indenização por dano cerebral

Andree Lau, do Huffington Post, entrevista Alissa Afonina.

“Eu sei tricotar. Você quer que eu me sente aí e tricote?” Alissa Afonina diz, com um sorriso que poucos chegam a ver.

Estamos encerrando nossa entrevista, em seu apartamento na área de Vancouver, e precisamos de algumas imagens a mais. Perguntamos sobre o balanço erótico em um dos quartos.

“É como uma rede. Posso me sentar nele e ler”, ela explica. Nós aceitamos sua sugestão de filmá-la amarrando suas botas pretas com plataforma de 6 polegadas, que sobem até suas coxas.

Afonina, 23, é uma dominatrix profissional que trabalha sob o nome Sasha Mizaree. Ela é paga para assumir o controle de um cliente submisso – tipicamente masculino – em sessões de papéis sadomasoquistas.

Mas ela escolheu essa ocupação “por um motivo pouco glamouroso”.

“Parte do motivo para eu me tornar uma dominatrix não foi só porque eu tinha essa vontade inexplicável de espancar pessoas”, disse Afonina ao Huffington Post BC [British Columbia] em sua primeira entrevista no Canadá.

“Porque sendo uma mulher com deficiência, o trabalho sexual é uma opção viável… Eu precisava de muito dinheiro, rapidamente, porque precisava cobrir as contas, e não tenho como, realisticamente, trabalhar oito horas.”

Afonina virou notícia em janeiro, quando um juiz da Suprema Corte de British Columbia lhe concedeu $1,5 milhão em indenização por um ferimento que, ele concluiu, mudou tanto a personalidade dela que essencialmente acabou levando à sua escolha de trabalho.

“A única razão pela qual qualquer um se importa é esse trabalho com o qual as pessoas ficam fascinadas, mas eu quero usar isso como plataforma para que outras pessoas que sofreram dano cerebral se sintam melhor”, disse ela. “Dizer a elas algo que eu queria ter ouvido antes – que não é sua culpa, e que você não está inventando isso.”

Nascida na Rússia, Afonina mudou-se para Vancouver quando tinha 12 anos. Em 2008, ela era uma adolescente norte-americana interessada em filmes góticos e de vampiro, e de vez em quando fazia experiências com álcool e drogas. (Ela destaca que não era excêntrica ou sexual.)

Naquele verão, ela era passageira, junto com sua mãe e seu irmão, em uma picape Toyota dirigida por Peter Jansson, então namorado de sua mãe. Logo depois de sair de um posto de gasolina, Jansson perdeu o controle da caminhonete na Rodovia 1, perto de Salmon Arm, BC.

O juiz Joel Groves decidiu que Jansson foi negligente ao dirigir com velocidade excessiva na chuva e jogar a picape em uma valeta.

O irmão de Afonina, Alexei, não ficou ferido seriamente. Sua mãe, Alla, foi levada ao hospital com costelas quebradas, um pulmão perfurado e ferimento no crânio.

Afonina não se lembra do acidente, mas emergiu com um dano cerebral traumático.

No tribunal, o professor Phil Byrne testemunhou que Afonina era uma estudante brilhante e dedicada, que cumpria os prazos e comparecia regularmente às aulas.

Mas depois do acidente, a menina que havia sido um “fio desencapado” tornou-se letárgica e sem foco. Não conseguia reter instruções, fazia comentários sexualmente impróprios durante a aula e se tornou socialmente isolada, disse Byrne.

Afonina acabou saindo da escola secundária, para terminar a 12ª série em casa. Ao longo dos quatro anos seguintes, em duas diferentes instituições pós-secundárias, ela tentou continuar sua educação. Segundo seus relatos, foi péssimo.

Entre dores de cabeça constantes e dores no pescoço e nos ombros, Afonina não conseguia se concentrar ou se lembrar de qualquer coisa. Seu cabelo começou a cair. Ela mal tinha energia para ir às aulas.

“Eu estou sempre cansada, mas, ao mesmo tempo, não consigo dormir. Se estou em um estado mental ruim, tenho dificuldade até para entrar no chuveiro.”

Ainda assim, em algum momento ela decidiu tornar-se uma dominatrix, cobrando $250 por hora (que é o tempo médio de uma sessão).

Afonina diz que é boa nisso, porque sabe ler bem as pessoas e tem um senso para antecipar o que elas desejam. Mas, mesmo trabalhando sozinha em seu apartamento, ela deixou de montar um sistema para se proteger no caso de acontecer alguma coisa.

“A verdade é que eu não tinha nenhuma salvaguarda: nem mesmo mandar SMS para um amigo, nenhum sistema de alarme”, disse ela. “É difícil explicar a lógica por trás disso… Olho para trás e realmente tenho sorte de nada ter acontecido comigo.”

Uma explicação está nas quatro zonas de dano no córtex frontal de Afonina. Essa parte frontal do cérebro controla como funcionamos como seres humanos, explica o dr. William Panenka, neurologista da Universidade de British Columbia que chefia o Programa de Neuropsiquiatria de Concussões.

“Então, quando você danifica as conexões com essa parte do cérebro, frequentemente você perde a capacidade de se auto-regular, de controlar seu comportamento e seus impulsos. Quando isso acontece, você toma decisões como essa moça fez”, explicou Panenka.

Mudanças de memória, de personalidade e impulsos sexuais profundos são condições comuns em ferimentos no lobo frontal.

“Para mim, é uma enterrada de basquete do ponto de vista legal”, disse o médico. É óbvio, pela tomografia, que ela teve essa parte do cérebro seriamente afetada, e eu ficaria surpreso ao não ver pelo menos algumas daquelas mudanças em alguém como ela.”

A decisão do tribunal

Durante um julgamento de 28 dias, os advogados de Afonina argumentaram que sua escolha de carreira mostrava “uma falta de pensamento correto resultante de perda de funcionamento cognitivo, causada pelo ferimento no cérebro”.

A defesa, porém, respondeu que Afonina é capaz de organizar seus clientes em uma escala regular e é capaz de manter algum nível de emprego.

O juiz concluiu que se não fosse pelo acidente, Afonina teria concluído um programa pós-secundário e encontrado um trabalho à altura. Agora, na melhor das hipóteses ela conseguiria trabalhos de meio período ou empregos de salário mínimo, disse Groves.

O tribunal concedeu a Afonina $ 825 mil por “perda futura de capacidade”, $ 377 mil pelo custo de cuidados médicos futuros, $ 300 mil por dor e sofrimento e $ 23.500 por danos especiais.

(No mesmo processo, Alla, a mãe de Afonina, recebeu $ 944 mil em compensação por dano traumático de intensidade média.)

“Me dá segurança saber que tenho algo a que recorrer, ou se eu tiver uma despesa médica grande”, refletiu ela. “Eu pensava que era muito depreciativo as pessoas dizerem ‘Ah, ela agora está rica’. Honestamente, eu daria cada centavo daquele dinheiro para ter minha saúde de volta.”

Casos em que alguém precisa mostrar como um ferimento levou uma pessoa a mudar de trabalho depois de um acidente normalmente envolvem trabalhadores sendo forçados a exercer um trabalho mais sedentário, disse Eric Goodman, advogado de casos de acidentes pessoais baseado em Vancouver.

“Este caso reafirma ainda mais o consenso médico de que mesmo um dano cerebral suave pode mudar dramaticamente a personalidade e os processos de decisão de uma pessoa, frequentemente de modo permanente e com efeitos negativos de longo prazo na qualidade de vida e na capacidade de obter renda”, disse ele ao HuffPost BC.

Goodman elogiou o tribunal por ignorar as “peculiaridades” de adolescente de Afonina pré-acidente e, ao invés disso, focalizar as evidências de que ela tinha um futuro próspero e brilhante à sua frente, antes do acidente.

“Foi encorajador ver o tribunal se recusar a julgar o livro por sua capa”, disse Goodman.

Em fotos publicadas online e exibidas em várias paredes no apartamento de Afonina, ela aparece fazendo biquinho e e em poses sedutoras. Não há fotos divertidas ou sorridentes – em parte para manter sua persona de dominatrix, em parte porque ela estava deprimida.

Mas a terapia e a medicação correta trouxeram Afonina para um lugar melhor.

“Sempre há dias melhores e dias piores. Eu aprecio cada dia bom, porque não sei o que vai acontecer em seguida”, disse ela.

“As pessoas me veem somente quando tenho aquelas explosões de energia, é quando estou no meu melhor. Então fica fácil assumir que ‘Bom, ela está bem, ela parece bem.’ Porque as pessoas têm essa ideia muito estereotipada de como se supõe que uma pessoa com deficiência deve se parecer.”

Afonina não marcou nenhuma sessão ao vivo nos últimos meses, focalizando mais na criação de videoclipes que as pessoas podem comprar online. Mas ela ainda não decidiu parar.

“Parte da razão pela qual não parei já não é tanto por causa do dinheiro, mas porque eu ainda não tenho outra coisa com que me identificar. Por muito tempo eu me identifiquei como ‘Eu sou uma dominatrix. É isso o que eu faço’, e isso me trouxe auto-estima – ao invés de não ter como responder à pergunta ‘O que você faz?’, que aparece em toda situação social.”

A esta altura, Afonina tirou suas intimidantes botas pretas e se senta descalça no sofá. Suspeito que ela está cansada, mas ela insiste que está OK.

Ela diz que quer escrever um livro sobre sua experiência, e talvez entrar na mídia, ou ser atriz, ou cantar.

“É uma bênção, porque estou tirando o maior proveito disso, mas a maldição é que agora todo mundo sabe meu nome e meu negócio.”