Entrevistas

Camille Paglia: prostitutas “fazem um trabalho importante e necessário, gostem ou não os moralistas de esquerda ou de direita”

Camille Paglia é professora de história da arte na Universidade das Artes de Filadélfia (EUA). Esta entrevista, concedida a Deborah Coughlin, foi publicada pelo Feminist Times em 14 de julho.

Quando o Daily Mail descreveu nossa entrevistada como uma “feminista dissidente”, em dezembro passado, nós sabíamos que tínhamos que falar com essa mulher que está fora da corrente principal do feminismo, a professora e escritora Camille Paglia. Eu queria saber por que não é fácil enquadrá-la em um campo, o que podemos aprender com sua dissidência e se, olhando para trás, ela consideraria agir de forma diferente na esfera pública.

Paglia amoleceu com a idade? Mmm, a resposta é um forte grito de NÃO!

P: O Daily Mail descreveu você como “feminista dissidente” e acrescentou uma lista de opiniões contraintuitivas que dizem que você tem. Por que é importante para uma feminista ser “dissidente”? Você alguma vez desempenha o papel de advogada do diabo? E precisamos de feministas que são “controvertidas”?

R: Sou uma dissidente porque meu sistema de crenças, trabalhado ao longo das últimas cinco décadas, foi repetidamente atacado, difamado e rejeitado por líderes feministas e seus acólitos em um espectro amplo, tanto dentro como fora do mundo acadêmico. Esse estilo punitivo de ostracismo coletivo começou desde o início da segunda onda do feminismo, quando Betty Friedan foi expulsa da Organização Nacional para Mulheres por mulheres mais jovens e radicais, que incluíam lésbicas separatistas fanáticas.

Como estudante universitária, em 1970, eu tive um confronto sem alarde com a futura romancista de sucesso Rita Mae Brown, em uma das primeiras conferências feministas realizadas na Escola de Direito da Universidade Yale. Brown disse: “A diferença entre você e eu, Camille, é que você quer salvar as universidades e eu quero queimá-las.” No ano seguinte, eu quase saí no tapa com a Women’s Liberation Rock Band, de New Haven, pelo fato de eu defender os Rolling Stones. Dois anos depois disso, como professora da Bennington College, durante um jantar em um restaurante de Albany, tive um confronto irado com as professoras fundadoras do programa de estudos da mulher da Universidade Estadual de Nova York, quando elas descartaram, de uma vez, qualquer papel dos hormônios no desenvolvimento humano. Me acusaram de ter sofrido “lavagem cerebral por cientistas homens”, uma acusação que eu ainda considero estúpida e desprezível. (Eu saí antes da sobremesa, boicotando o evento feminista para o qual nós todas estávamos indo.)

Houve uma sequência constante de outros incidentes desagradáveis, mas tudo ficou para segundo plano em comparação com a tempestade internacional de mentiras e calúnias que eu tive de enfrentar depois da publicação, em 1990, de meu primeiro livro, “Sexual Personae” (uma expansão de 700 páginas de minha dissertação em Yale). Está tudo documentado e detalhado no final de minhas duas coletâneas de ensaios, mas vou dar um exemplo. Em 1992, Gloria Steinem, a czarina do feminismo norte-americano, sentava-se em seu trono com suas herdeiras designadas, Susan Faludi e Naomi Wolf, no palco do centro cultural 92nd Street Y, em Nova York, e quando alguém da plateia fez uma pergunta sobre mim, elas responderam: “Não damos a mínima para o que ela pensa.” O momento foi registrado por câmeras de TV e transmitidas no programa 60 Minutes, da CBS. Ao longo dos anos, Faludi insistiu, de modo monótono, que eu não sou uma feminista, mas “apenas faço esse papel na TV”. Bom, quem elegeu Faludi para papa? Nem ela, nem qualquer outra feminista, tem o direito de canonizar ou de excomungar.

Eu continuo a ser uma feminista de oportunidades iguais. Quer dizer, eu defendo a remoção de todas as barreiras a que as mulheres avancem nos reinos profissional e político. Mas me oponho a proteções especiais para mulheres (como tratamento diferenciado para os nomes de acusado e acusadora em casos de estupro) e condeno códigos de discurso de qualquer tipo, acima de tudo em campus de universidade. Além disso, como libertária, sustento que nossa vida sexual privada e nosso mundo emocional são ambíguos demais e volúveis demais para obedecer aos códigos apropriados que governam os locais de trabalho. Como eu disse recentemente ao Village Voice, sustento que todo mundo tem um potencial bissexual e que ninguém nasce gay. Precisamos de uma psicologia mais flexível, assim como precisamos que acabe a amarga guerra feminista aos homens. Minha doutrina feminista está completamente documentada em quatro de meus seis livros.

Quanto a desempenhar o papel de advogada do diabo, não posso imaginar uma feminista comprometida engajando-se naquele tipo de jogo tolo. O problema real é a intolerância sectária, com visão de túnel, que aflige um número demasiado grande de feministas, que parecem despreparadas para reconhecer e analisar ideias. Tanto nos EUA como na Grã-Bretanha, tem havido um vício excessivo na “teoria” em estudos pós-estruturalistas e pós-modernistas sobre gêneros. Com seu jargão opaco e posições elitistas, a teoria não é maneira de construir um movimento no mundo real. Meu sistema de feminismo pró-sexo foi construído com uma combinação de pesquisa erudita com observação social do dia a dia.

P: A notória troca de faxes entre você e Julie Burchill, na Modern Review, ainda é tema de lendas na mídia britânica. Algum arrependimento depois de tudo aquilo? Se você estivesse orientando uma jovem Camille hoje, como você lhe diria para lidar com aquele tipo de situação? Todos os canhões disparando, combativa, vamos detonar, ou você recomendaria alguma meditação e compreensão?

R: Não há uma única coisa que eu mudaria na maneira como me conduzi naquele episódio amargo de 1993. A jornalista britânica Julie Burchill me atacou e insultou gratuitamente e eu respondi à altura. Nossas trocas continuaram, com minhas respostas ficando mais longas e as delas mais curtas, até ela perceber que havia julgado mal sua oponente e bateu em retirada.

Aprendi a golpear e a me defender com meus primeiros modelos, Oscar Wilde, Dorothy Parker e Mary McCarthy. Germaine Greer, a quem admiro profundamente, sempre foi gloriosa em combate. Quanto a ser mentora de uma jovem Camille Paglia, eu lhe diria para estudar meus movimentos de artes marciais e a fazer igual!

P: Nos encontramos no meio de muitas batalhas mentais como aquelas online, à medida que o Twitter está, na verdade, publicando os faxes de todo mundo. Como alguém que reage à altura, como você se sente quando algumas feministas e escritoras proeminentes são perseguidas no Twitter por outras feministas? O que você acha que o Twitter está fazendo ao feminismo – tornando-o mais narcisista, polarizado, barulhento demais, ou uma comunidade democrática, pluralista e florescente?

R: É um comentário triste sobre o estado atual do feminismo o fato de o movimento ter sido reduzido aos fragmentos maníacos e à obsolescência instantânea do Twitter. Embora eu adore a internet e tenha sido uma contribuinte cofundadora da Salon.com desde sua primeira edição, em 1995, não tenho interesse nenhum em mídias sociais. Meu editor mantém uma página de Facebook para mim no site da Random House, mas não publico no Facebook nem no Twitter, e nem saberia como.

É difícil entender como uma geração criada no nervosismo desleixado do Twitter e do SMS poderá desenvolver uma voz lógica, coerente e característica no escrever e na argumentação. E sem livros e ensaios fortes como um repositório para novas ideias, os movimentos modernos acabarão se desfazendo por falta de continuidade e de base lógica. Blogs estridentes e apressados, produzidos sem que se dedique tempo para reflexão e revisão também estão degradando a qualidade da escrita em prosa de uma forma geral.

Quanto a feministas serem perseguidas no Twitter por outras feministas, como isso soa trivial e adolescente! Os dois lados deveriam sair da internet e ler mais – história, sociologia, psicologia e o grande assunto negligenciado, biologia. Como é que o mundo em geral, e muito menos os homens, vão levar o feminismo a sério se suas proponentes mais ardorosas se comportam como meninas de irmandades escolares, como gatinhas tendo ataques e bufando umas para as outras na cantina do colégio?

P: As duas questões feministas que criam a maior barulheira no Twitter, e geram reações contrárias, não importa de que lado você esteja, são a da indústria do sexo e a do gênero, a última especialmente em relação ao transgênero. Quais são os seus pensamentos sobre essas duas questões?

R: Eu apoio, defendo e admiro as prostitutas, gays ou heterossexuais. Elas fazem um trabalho importante e necessário, gostem ou não os moralistas da direita ou da esquerda. A prostituição infantil e a escravização sexual são, é claro, infrações às liberdades civis e devem ser estritamente policiadas e proibidas.

Feministas que acreditam que podem abolir o comércio sexual estão em um estado de ilusão em massa. Somente um regime fascista e impiedoso de grande escala poderia erradicar o impulso sexual safado, que não dá para distinguir da força vital. Simplesmente, no mundo ocidental, a sexualidade pagã sobreviveu a 2 mil anos de perseguição judaico-cristã, e dificilmente será derrotada por umas poucas feministas batendo nela com suas vassouras.

O transgenerismo disparou como um trem de carga, e se tornou quase impossível discuti-lo com a neutralidade analítica que a erudição ética e honesta exige. Primeiro de tudo, deixe-me dizer que me considero um ser transgênero, não sendo nem homem, nem mulher, e eu gostaria de ver a categoria de gênero “outra” em passaportes e outros documentos governamentais. Eu telegrafei minha dissidência de gênero desde a infância, nos anos 1950, por meio de fantasias de Halloween exuberantemente masculinas (soldado romano, toureiro, Napoleão, etc.), que na época eram, de modo chocante, desconhecidas para meninas.

Como libertária, acredito que cada indivíduo tem o direito de modificar seu corpo à vontade. Mas estou preocupada com o clima atual, inflamado por teorias de gênero pós-modernistas mal ajambradas, que convence jovens que podem ter outras questões pessoais ou familiares mal resolvidas de que a cirurgia de redesignação de sexo é uma estrada dourada para a felicidade e a identidade verdadeira.

Como é que aconteceu de tantas das pessoas jovens mais ousadas e radicais agora se definirem somente pela identidade sexual? Houve aqui um colapso de perspectiva que certamente terá consequências variadas para nossa arte e cultura, e que poderá, talvez, minar a capacidade das sociedades ocidentais para entenderem ou reagiram às crenças veementemente contrárias e outros que não nos querem bem. Como eu mostrei em “Sexual Personae”, que começou como um estudo sobre a androginia na literatura e na arte, o fenômeno transgênero se multiplica e se espalha nas fases “tardias” de uma cultura, à medida que as tradições religiosas, políticas e familiares começam a declinar. Vou continuar a celebrar a androginia, mas não tenho ilusões sobre o que ela pode prognosticar para o futuro.

A entrevista original: Cliquish, tunnel-vision intolerance afflicts too many feminists.