Direitos

Aposentadoria, licença-maternidade, férias pagas. Na Bélgica tem.

Contratos de trabalho, férias anuais pagas, aposentadoria, licença-maternidade, seguro-desemprego e e o mesmo acesso aos serviços de saúde de outros trabalhadores são alguns dos benefícios conquistados pelas trabalhadoras sexuais da Bélgica desde 1° de dezembro, quando entrou em vigor uma lei que o Parlamento do país havia aprovado em maio (com 93 votos a favor, 33 abstenções e zero contra). O país já havia descriminalizado o trabalho sexual desde 2022 e é o primeiro no mundo a conceder direitos trabalhistas plenos à categoria.

Segundo a NSWP (Rede Global de Projetos sobre Trabalho Sexual), a nova lei é fruto de discussões entre os ministérios do Trabalho, da Justiça e da Saúde e três organizações das trabalhadoras sexuais belgas, o Utsopi (União dos Trabalhadores/as Sexuais Organizados pela Independência), a Violett e o Espace P. A legislação anterior mantinha a ilegalidade de contratos de trabalho para prostitutas, que eram obrigadas a trabalhar como profissionais autônomas, sem acesso às proteções das leis trabalhistas, ou numa “área cinzenta” de semi-ilegalidade, contratadas como massagistas ou garçonetes.

Ativistas do Utsopi

“Eu tive que trabalhar quando estava no nono mês e gravidez”, disse à BBC Sophie, mãe de cinco filhos. Ela contou que foi orientada pelos médicos a ficar em repouso por seis semanas, mas teve que voltar ao trabalho imediatamente. “Eu não podia me dar ao luxo de parar, porque precisava do dinheiro”, acrescentou. Para Sophie, a nova legislação “é uma oportunidade para existir enquanto pessoa”.

“Essa lei é um enorme passo à frente, dando fim à discriminação legal contra trabalhadoras sexuais, ao permitir um contrato regular de trabalho com todos os benefícios”, comentou o Utsopi. “Em primeiro lugar, isso significa acesso à seguridade social: aposentadoria, seguro-saúde, benefícios familiares, férias anuais, licença-maternidade etc. Ao mesmo tempo, a lei assegura que as trabalhadoras sexuais, em seus locais de trabalho, estarão protegidas de riscos relacionados ao trabalho e que nem todo mundo poderá se tornar empregador nessa área.”

Entre os direitos especificados na lei estão: qualquer trabalhadora pode optar por recusar um cliente ou um ato sexual, interromper um ato ou realizá-lo como desejar. Aqueles que querem se tornar empregadores não podem ter condenações por crimes graves (particularmente por estupro ou tráfico de pessoas), devem nomear uma pessoa de referência para a segurança da trabalhadora sexual e fornecer um botão de alarme que se conecte imediatamente à pessoa de referência. Para coibir a atuação de máfias internacionais ligadas ao tráfico de pessoas, os empregadores não podem ser empresas sediadas fora da Bélgica. Apenas maiores de 18 anos podem assinar contratos de emprego como trabalhadoras sexuais; estudantes não podem assinar contratos nessa área, nem mesmo em tempo parcial.

“Sou uma trabalhadora sexual belga muito orgulhosa neste momento”, escreveu em seu instagram a ativista do Utsopi Mel Meliciousss. “As pessoas que já trabalham na indústria estarão muito mais protegidas, e as pessoas que vão trabalhar nessa área também sabem quais são os seus direitos.”

Condições de trabalho

Quentin Deltour, gerente de comunicações do Espace P, disse à CNN que os empregadores precisarão ser licenciados pelo governo e terão que oferecer preservativos, lençóis limpos, chuveiros e outras condições de trabalho. Segundo ele, “a mentalidade anterior era de que o trabalho sexual não é compatível com a dignidade das mulheres. Agora podemos conter esse pensamento moralista. Para algumas pessoas, trabalho sexual é trabalho”.

A coordenadora do Espace P, Isabelle Jaramillo, disse à Associated Press que “isso é um passo adiante incrível. Significa que a profissão finalmente pode ser reconhecida pelo Estado belga”. Ela ressalvou que “ainda há muito trabalho a ser feito”, o que incluiria o treinamento da polícia e do Judiciário para que respeitem e protejam trabalhadoras sexuais marginalizadas.

Em nota, o Utsopi observou que a linguagem da lei ainda pode “ser instrumentalizada” por municípios belgas para reprimir o mesmo eliminar o trabalho sexual em suas jurisdições. “Já estamos vendo alguns municípios se esconderem atrás das palavras ‘segurança’ e ‘higiene’ para promulgar regulamentações locais muito restritivas que tornam o trabalho sexual quase impossível em seus territórios”, diz o comunicado.

Nos últimos anos, cidades como Liège e Ghent proibiram a “prostituição de janela” – na qual prostitutas oferecem seus serviços em janelas que dão para a rua, como nas zonas mais famosas de Amsterdã (Holanda) e Hamburgo (Alemanha). Antuérpia reestruturou seu “bairro da luz vermelha” e Seraing planejava construir um “Centro Eros” afastado do centro da cidade, mas parece ter abandonado essa ideia.

Janela de trabalho em Antuérpia

Para Daan Bauwens, ativista do Utsopi, muitas pessoas que optem por fazer trabalho sexual o fazem por causa de dificuldades econômicas, discriminação, desigualdade ou falta de alternativas melhores. “Não estamos glamorizando nada. Nos casos em que pessoas fazem essa escolha por estarem passando por dificuldades, não vamos puni-las uma segunda vez ao negar direitos básicos que concedemos a todo mundo”, acrescentou.

Bauwens disse à VRT News que as discussões com o governo começaram durante a pandemia de covid-19. “Começou durante o primeiro lockdown. Todos os setores tiveram que fechar e todos eles receberam compensações do governo, exceto o de trabalho sexual. Tornou-se evidente que era preciso haver um estatuto para as trabalhadoras sexuais, se era para o setor existir. Ninguém está a favor de que ele desapareça abaixo do nível do radar. Se o setor existe e é reconhecido, então as trabalhadoras sexuais também devem ser reconhecidas e ter acesso a contratos de emprego e à seguridade social.”

Erin Kilbride, pesquisadora do Human Rights Watch, disse à BBC que “Isso é radical, e é o melhor passo que vimos no mundo até agora. Precisamos que todos os países se movam nessa direção”.

A reação dos empregadores

“É bom saber o que é permitido legalmente, porque a questão sempre foi saber se estávamos fazendo as coisas da forma correta ou não”, disse à Euronews Alexandra Moreels, proprietária de um bordel. Sobre o respeito aos direitos das trabalhadoras, eu marido e sócio, Kris, afirmou que “não temos nenhum problema com isso, de modo que tudo aqui é legal. Está tudo descrito na lei que está entrando em vigor. As moças devem ter o direito de escolher quais clientes querem atender. Isso já é o caso aqui”.

Os empresários Alexandra e Kris

“O trabalho sexual existe. E se você não o pratica abertamente, ele vai existir no submundo”, comentou Karin van der Elst, proprietária do complexo Villa Tinto, em Antuérpia, onde prostitutas alugam janelas para trabalhar.

Já as proibicionistas – o setor do movimento feminista que defende a abolição da prostituição – são contra a nova legislação, caracterizada como “catastrófica” pelo Conselho de Mulheres Francófonas da Bélgica. “Assumir que a prostituição existe e que devemos proteger as trabalhadoras é aceitar essa violência sexista, e não combatê-la, disse ao Le Soir a presidente da organização, Sophie Rohonyi.

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