A pandemia não tem cara de puta
A Casa Roja de Constitución e a ajuda sindical à vizinhança
Por Julieta Bugacoff e Federico Muiña para El Cohete a la Luna, imagens de El Cohete a la Luna.
São 10h35min. Na esquina das ruas Santiago de Estero e Constitución, um grupo de 80 pessoas faz fila em frente à Casa Roja. No dia anterior, os bombeiros e alguns policiais espalharam a notícia de que no local, pintado com cores chamativas, se distribuiriam cestas básicas. Uma vizinha de mais de 70 anos viu a situação de sua sacada. Não hesitou em aproximar-se e perguntar se também poderiam lhe doar algo. Vive só e, por razões óbvias, não pode se expor saindo à rua.
As garotas do local aceitaram, e também se ofereceram para fazer as compras para ela, caso necessite. Impuseram apenas uma condição: “Da próxima vez, não nos envie para a delegacia. Lembra que somos as putas que estamos te ajudando.”
O paradigma feminista implica entender que todos os conflitos históricos são atravessados pela questão de gênero. A violência está inscrita no corpo das mulheres. Há um jogo duplo: por um lado, agressão física e verbal; e, por outro, a deslegitimização de seu papel em situações de crise. Na Segunda Guerra Mundial, os soldados não se cansavam de afirmar que “a guerra não tem o rosto de uma mulher”. No entanto, eles omitiram que apenas no Exército Vermelho da União Soviética, quase um milhão de mulheres lutaram e se alistaram, a maioria delas com menos de 25 anos. No caso das prostitutas, elas raramente são concebidas como mais do que despojos de guerra, quando a realidade mostra que são atrizes políticas fundamentais.
Em seu livro A Patagônia Rebelde, Osvaldo Bayer reconstrói um episódio ocorrido logo após o fuzilamento dos operários no sul argentino. Depois da matança, os oficiais do exército quiseram premiar aos soldados. Tinham arranjado com vários prostíbulos para que estivessem preparados para receber homens de vários regimentos. Mas em “La Catalana”, lupanar dirigido por Paulina Rovira, as cinco trabalhadoras sexuais se negaram a oferecer seus serviços. “Com assassinos não nos deitamos!”, gritaram todas. Suas únicas armas eram vassouras. Todas acabaram detidas em um calabouço, e o acontecimento não teve maiores proporções porque, nas palavras do tenente encarregado pela guarnição, David Aguirre, “se tratava apenas da opinião de cinco putas”.
Para o autor do livro, este feito possui um simbolismo elementar. É a única flor —simbólica, claro— que cresce nos túmulos dos milhares de operários assassinados em fevereiro de 1921.
Georgina Orellano descansa dentro do local onde hoje, depois de muitas idas e vindas, reluz o letreiro da Casa Roja. Tem as unhas bem feitas e pintadas de vermelho. Em seu braço se lê, tatuado em letras maiúsculas, a palavra “PUTA”. Já são quase 12h30 e é a primeira vez que uma das principais referências da Associação de Mulheres Meretrizes da Argentina (AMMAR) pode descansar por cinco minutos.
No dia de hoje, o trabalho realizado pelo sindicato das trabalhadoras sexuais da Argentina foi fundamental, e muita gente pode comer graças a elas. Todas as sextas-feiras, desde que foi decretada a quarentena obrigatória, se encarregam de distribuir uma sacola contendo arroz, farinha, macarrão, mate e leite, entre outros produtos essenciais. “Nós não podemos nos ocupar do que o Estado não faz. Somos o sindicato das putas, e nossa ideia era de que as cestas básicas fossem para elas. Mas se vem uma mãe com filhos, vou lhe dizer que não?”, comenta, enquanto atende seu celular.
Quando perguntamos a Georgina o que mudou em sua rotina desde a quarentena, a primeira resposta é que nem ela nem as suas companheiras dormem muito. Faz duas semanas que recebem mais de 400 mensagens de WhatsApp por dia. Nem todas são de trabalhadoras sexuais, mas ainda assim há uma problemática que persiste, para além da questão alimentar: os despejos.
Matías Busso, advogado do sindicato, explica que elas apostam sempre por um diálogo antipunitivista: “O ideal é evitar um confronto com o dono ou a dona do lugar. Tratamos sempre de chegar a um acordo, e evitar fazer a denúncia, Na maioria dos casos, o protocolo funciona bem”.
Como já relatou Agustina Paz Frontera, há poucos dias, por um Decreto de Necessidade e Urgência, o governo nacional proibiu os despejos até setembro e congelou os preços dos aluguéis. Um dos grandes problemas da cidade de Buenos Aires é a crise de moradia. Neste contexto, a problemática se agrava para os trabalhadores da economia popular. O caso das putas expõe o nível de precariedade e desamparo que enfrentam de forma constante.
Além de Georgina e sua companheira de militância Valeria Del Mar, na Casa Roja descansam duas garotas. Na quinta-feira, a imagem delas viralizou nas redes sociais, pois estavam em situação de rua. Ao fundo, toca um reggaetón suave, e a dirigente de AMMAR as avisa: “Encontramos um hotel para vocês, mas terão que dividir o quarto.” Elas respondem, quase em uníssono, que não se importam por que são como irmãs. Com seu humor tipicamente ácido, Valeria retruca: “Sim, irmãs de leite.” Todas riem e se esquecem, ainda que por um momento, da crise mundial.
Enquanto isso, outra companheira prepara o que serão suas cestas básicas, para que as levem ao hotel. Na atualidade, AMMAR conta com mais de 6.500 filiadas em todo o país. Sua tarefa não se limita a ações na Capital Federal, além disso se mantém em contato com trabalhadoras sexuais de outras províncias. Nos lugares onde não são muito presentes, apelam a conhecidas para fazer chegar as doações, ou à Central de Trabalhadores da Argentina.
Valeria Del Mar sorri quando as outras a chamam de “A Evita de Constitución”. Um apelido que sem dúvida é digno de sua história. Além de ser autora na causa por delitos de Lesa Humanidade conhecida como o Pozo de Banfield, foi a primeira mulher trans beneficiada pela lei de identidade de gênero. Em 2012, Cristina Fernández de Kirchner lhe entregou seu novo DNI. Valeria tem 63 anos e, apesar de fazer parte do grupo de risco, diz que não tem medo de se infectar pois o mais importante é ajudar as outras. Meio de brincadeira, e um pouco a sério, comenta que “o barbudo não me quer lá em cima, porque sabe que eu faria bagunça demais”. Junto com Georgina, ela é uma das principais referências da militância pelo trabalho sexual.
Em março, completaram-se 25 anos da criação da AMMAR. Para muitas mulheres, não se trata apenas de um lugar de amparo, militância e conscientização política e sanitária, mas também implicou o começo da ressignificação da palavra “puta”. Até pouco tempo atrás, muitas mulheres escondiam de suas famílias e amigos seu ofício. Hoje, suas mães as defendem nas redes sociais. O que para muitas ainda é um insulto, as militantes de AMMAR o tomaram para si e se apropriaram dele como uma bandeira. A receita para as trabalhadoras sexuais é bem simples: à violência simbólica se responde com feminismo.
Na sexta-feira passada, quando distribuíram as cestas básicas pela primeira vez, algumas vizinhas tentaram denunciar – novamente – a Casa Roja. Acusam as mulheres de venda de cocaína e a sede do sindicato de ser um prostíbulo. A polícia explicou a Mirta e Mabel que não poderia detê-las: é a casa das “brincalhonas” e estão ajudando os vizinhos. Da outra esquina, uma garota esclareceu aos gritos: “¡Putas! ¡Somos as putas!” Há mais de uma semana, a quantidade de gente que foi até lá para receber doações pela segunda vez foi quase o dobro do número da primeira. Uma mistura de pessoas de idade, famílias com filhos e trabalhadoras sexuais formaram uma fila desde as 8 da manhã. Na próxima semana, farão o mesmo, e seguirão fazendo até que a situação melhore, até que o contato humano volte a ser moeda corrente e as putas possam voltar a trabalhar.