O pânico moral na Copa
Por Washington Castilhos, publicado originalmente pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM)
Kaitlyn Hunt, uma líder de torcida do estado norte-americano da Flórida, tinha 17 anos e namorava uma menina de 14. Tinham um relacionamento estável e mutuamente consentido. Quando completou 18 anos, porém, os pais de sua namorada – evangélicos que não aceitavam a relação das duas adolescentes – denunciaram Kaitlyn à polícia por “abusar sexualmente” de sua filha (então com 15 anos de idade). Ela foi presa na casa de seus pais, acusada de “agressão lasciva e indecente de criança de 12 a 16 anos” – acusação que só lhe foi imputada pelo fato de ela não ser homem, pois a lei de seu estado reconhece relacionamentos de casais afetivo-sexuais que começaram a namorar antes da maioridade, desde que sejam heterossexuais. Enquadrada como criminosa sexual e “abusadora de menores”, Kaitlyn seria impedida de entrar hoje em dia no Brasil pela polícia federal, independentemente da decisão do tribunal de seu país se ela é culpada ou não. Isto devido a uma portaria interministerial brasileira, em vigor desde 23 de maio, que impede a entrada no país de estrangeiros envolvidos em denúncias de crimes sexuais contra crianças e adolescentes.
A medida integra um conjunto de políticas públicas com vistas a coibir o aumento da exploração sexual de crianças e adolescentes e o tráfico de pessoas antes e durante os megaeventos esportivos que o Brasil sediará – a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, a despeito da inexistência de estudos científicos que comprovem o suposto elo entre a ocorrência desses crimes e a realização de eventos esportivos. Um resumo do tema “exploração sexual, tráfico e megaeventos esportivos” foi publicado em 2011 pela Global Allaince Aganist Trafficking in Women e comprova a falta de evidências que ligam tais eventos aos crimes mencionados (leia a tradução para o português do relatório da GAATW).
Uma semana antes do início da Copa, Somaly Mam, uma das ativistas antitráfico mais famosas do mundo, foi afastada de sua fundação após uma investigação que comprovou que ela rotineiramente mentia sobre seu passado e o passado das mulheres que ela supostamente “resgatou” da escravidão. Até o The New York Times, que publicizou muitas das acusações denunciadas por Somaly, foi forçado a admitir que ela não era uma fonte confiável.
O antropólogo Thaddeus Gregory Blanchette, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coloca o alarmismo gerado pela mídia – como fez o The New York Times com as “denúncias” feitas por Somaly Mam – como um dos fatores que mais substanciam o pânico moral em torno do abuso sexual infanto-juvenil e o chamado tráfico de pessoas. “A mídia global tem abusado desses assuntos, reportando boatos como fatos e, em muitos casos, simplesmente inventando números ou reportando erroneamente os resultados dos estudos que foram feitos. O medo vende e nada alarma mais que o espectro de crianças estupradas. A mídia exagera e muitas vezes até mente sobre tais assuntos porque as manchetes alarmantes criam interesse. E, num mundo em que a mídia tradicional está cada vez mais à deriva, ameaçada pelas novas fontes e novas mídias, vender jornal é o que importa”, afirma.
Segundo o pesquisador, um exemplo de como a mídia nacional tem lidado com o tema do abuso e da exploração sexual infanto-juvenil de forma exagerada é a matéria produzida recentemente pelo jornal O Globo intitulada “Aliciadores já atuam em cidades da Copa do Mundo“. Diz o texto jornalístico:
“Registros internacionais indicam que o aumento da exploração sexual de crianças e adolescentes antes e durante os chamados megaeventos é um fato − e isso não deveria, portanto, pegar de surpresa nenhuma autoridade brasileira. Pesquisa feita pela Brunel University, do Reino Unido, reuniu dados disponibilizados mundo afora nos últimos anos e constatou que, em Gana, antes do Campeonato Africano das Nações de 2008, a polícia desbaratou uma grande rede disposta a recrutar crianças para prostituição. Na Copa da África do Sul, em 2010, o fenômeno se repetiu. Meninas foram preparadas e coagidas a trabalhar no comércio sexual armado em torno do evento. Na Copa da Alemanha, em 2006, outro registro do drama humano. Segundo a pesquisa, durante a competição, foi constatada uma clara conexão entre a exploração sexual infanto-juvenil e o aumento do consumo de álcool.”
De acordo com Blanchette, se lidas com atenção, as conclusões da pesquisa da Universidade de Brunel são justamente o oposto das reportadas por O Globo.
“A pesquisa relata que existem poucas evidências sólidas ligando a exploração sexual de crianças antes e durante os megaeventos esportivos. Os três casos relatados por O Globo são os únicos relatados na pesquisa da Brunel. Ademais, são apresentados numa linguagem sensivelmente diferente daquela usada pelo jornal. No caso de Gana, não há menção alguma de ‘uma grande rede’: o relatório só fala que a polícia encontrou planos para recrutar crianças e adolescentes para a prostituição durante o evento. No caso da África do Sul, o relatório fala que o aumento nos relatos de exploração era provavelmente parte de uma tendência mais geral, também possivelmente causado por um aumento na consciência da população sobre esse problema”, analisa o pesquisador.
“E em relação à Copa da Alemanha (onde supostamente 40.000 pessoas seriam traficadas para fins da exploração sexual – no atual evento, somente 4 foram descobertas pela polícia), a pesquisa nem foi feita na Alemanha e não mirava a exploração sexual, nem o tráfico: foi feita na Inglaterra e mirava a violência doméstica”, diz Blanchette.
“Notável aqui é que o estudo original, citado pela Brunel, fala em exploração sexual dentro da família – o que no Brasil chamamos de ‘abusos sexuais’. Isto, sim, aumenta em dias de jogos… e também em feriados como a Páscoa e o Natal, de acordo com o mesmo estudo. A pesquisa não fala absolutamente nada sobre exploração sexual – crianças sendo prostituídas – e não articula os megaeventos esportivos a um aumento na exploração sexual fora dos confins da família”, afirma Thaddeus Blanchette.
O estudo da Brunel conclui – assim como o da GAATW – que um dos maiores perigos trazidos pelos megaeventos esportivos para as crianças tem a ver com o policiamento agressivo e a “higienização” (particularmente a remoção de crianças de rua pelas forças de segurança) e a destruição de comunidades, deslocadas pelas construções associadas aos eventos. “Isto, sim, coloca as crianças em risco para exploração sexual. Porém, não existem evidências sólidas, de acordo com os pesquisadores da Brunel e da GAATW, de que o tráfico de pessoas e a exploração sexual de crianças de fato aumentem em função desses jogos”, assinala Blanchette.
No primeiro fim de semana após o início dos jogos no Brasil, o site do jornal francês Le Monde trouxe na primeira página uma longa reportagem – intitulada “Fortaleza, cidade do turismo sexual” – sobre a prostituição de menores perto do estádio Arena Castelão, na capital do estado do Ceará, nordeste do país. Na reportagem, o correspondente do jornal francês foi ao encontro das meninas brasileiras que se prostituem nas avenidas e ruas próximas ao estádio onde acontecem jogos da Copa do Mundo. Segundo uma representante da associação Esplar, que investiga os casos de prostituição nas ruas, existem dois tipos de prostitutas menores: aquelas que fogem da seca e da miséria e vêm do interior do Ceará, que se vendem nos faróis e esquinas para alimentar a família, e os jovens, meninos e meninas de classe média baixa, que encontraram na prostituição uma maneira de pagar os estudos ou melhorar o salário. Mas em momento algum estabelece uma relação direta e causal entre a prostituição de menores naquela cidade e a realização da Copa.
Corrida contra o ‘tráfico’
Apesar dos mitos e exageros no que diz respeito à correlação entre a exploração sexual infanto-juvenil e megaeventos esportivos, é fato que o Brasil tem um número considerável de pessoas que vendem sexo e que migram em função disto. No entanto, é interessante notar que, no Rio de Janeiro, a maior parte dos esforços antiprostituição da polícia, antes e durante a Copa, tem mirado até agora justamente na prostituição livre – ou seja, nas mulheres adultas independentes que trabalham nas ruas e bares sem intermediários ou cafetões. “Ou seja, os esforços da policia não parecem estar centrados na eliminação da cafetinagem e sim na ‘higienização’, na eliminação das prostitutas dos lugares públicos onde a mídia estrangeira pode vê-las”, destaca Thaddeus.
Para o pesquisador, obviamente, vai haver mulheres e homens que irão migrar para vender sexo num evento como a Copa. Mas, em sua maioria, irão de forma autônoma. “A vasta maioria dessas pessoas não são ‘escravizadas’ pelo ‘tráfico’. As acusações de tráfico e exploração sexual estão sendo operacionalizadas como motivo para impedir viagens internacionais – seja de brasileiros indo para o exterior, seja de estrangeiros vindo para cá. É uma nova maneira de implementar filtros sobre as migrações de populações ‘indesejadas’. Obviamente, alguém que estupra crianças deve ser impedido de viajar e devemos também ficar atentos para pessoas que se engajam em migrações forçadas para serem exploradas sexualmente. Mas a maioria dos casos antitráfico que estamos vendo por aí não tem nada a ver com isto: buscam só e simplesmente reprimir a migração de pessoas adultas, cujos comportamentos sexuais são inofensivos, porém estigmatizados”, salienta o pesquisador.
Nessa corrida contra o chamado “tráfico”, os direitos constitucionais das pessoas de ir e vir estão sendo violados. “Basta ver a política da polícia federal, que se acha autorizada a impedir a viagem de qualquer brasileira suspeita ou denunciada – até mesmo por vias anônimas. A polícia também acha que tem o direito de proibir a entrada de qualquer estrangeiro acusado de crimes sexuais (provas não são necessárias). Isto é muito problemático, uma vez que ‘crime sexual’ pode enquadrar até mesmo a ‘homossexualidade’ em muitos países, e, em alguns deles (Uganda e Rússia, por exemplo), é práxis acusar homossexuais de serem pedófilos”.
A associação homossexualidade-pedofilia, mencionada por Blanchette, é abordada no trabalho do antropólogo Roger Lancaster (Sex Panic and the Punitive State), que tem documentado como a nova onda de medo sobre a “pedofilia” está sendo usada como arma contra as comunidades LGBT.
No Brasil, apesar das tentativas de alguns setores de associar a pedofilia à homossexualidade como estratégia para virar a opinião pública contra os avanços dos direitos das pessoas LGBT, as próprias estatísticas do governo federal mostram que a maior parte dos abusos sexuais e da exploração sexual de menores acontece dentro de casa, perpetrados por pais, padrastos e outras pessoas próximas às crianças. E quando se fala em violência contra a mulher, os dados apontam que 40% das mulheres brasileiras têm sofrido algum tipo de violência pelo parceiro íntimo. Ou seja, o homem que mais põe em risco a vida e a liberdade da mulher brasileira é, estatisticamente falando, aquele que divide uma casa com ela.
“Ademais, no Brasil existem mais padres e pastores denunciados do que turistas estrangeiros acusados, através do Disque Denúncia, de abusar ou explorar sexualmente de menores. No entanto, quando o Jornada Mundial da Juventude veio ao Brasil no ano passado, com suas centenas de milhares de turistas fiéis, ninguém falou nos riscos do tráfico, abuso de menores ou exploração sexual, apesar das acusações frequentes que recaem sobre representantes da Igreja Católica em relação a estes tipos de crimes. Nunca ouvi falar que a FIFA proteja pedófilos; a Igreja, por sua vez, já foi condenada por isto”, destaca Blanchette.
A ênfase no tráfico de pessoas
Para a antropóloga norte-americana Elizabeth Bernstein, a ênfase de grupos conservadores no tráfico de pessoas é uma maneira de deixar entrar pela porta de serviço muitos dos projetos de lei que criminalizam comportamentos sexuais que não passariam de maneira aberta pelos congressos nacionais.
“É significante, neste sentido, que o deputado conservador Marco Feliciano tenha escolhido, quando era presidente da Comissão de Direitos Humanos, o tráfico de pessoas como uma das ênfases principais daquela Comissão. E que a deputada Liliam Sá, também conservadora, liderasse a última CPI do tráfico. A meu ver, o objetivo dessas pessoas não é a repressão à escravidão: elas buscam usar o alarmismo gerado na mídia por acusações de tráfico para domesticar o sexo”, conclui Thaddeus Blanchette.
O fato é que, nessa luta contra o “trafico” de pessoas, a repressão tem caído, principalmente, sobre as profissionais do sexo. Diversas pesquisas chamam a atenção para o racismo e a xenofobia escondidos por trás de muitas dessas iniciativas antitráfico na Europa e nos EUA. Os trabalhos de Adriana Piscitelli e de Laura Agustín mostram como boa parte dos esforços das políticas antitráfico na Espanha está voltada para a expulsão de determinadas categorias de mulheres imigrantes tidas como “indesejadas”.
E no Brasil, o grosso dos esforços voltados para a questão do tráfico se resume às tentativas de desencorajar as migrações de determinados grupos de pessoas (entendidos, no jargão antitráfico, como “vulneráveis”, e quase sempre representados por mulheres negras e pobres) e de reprimir a prostituição. Dar ou emprestar dinheiro para alguém viajar em função da prostituição agora é um ato entendido como digno de uma “máfia internacional” aos olhos de muitos operadores da lei.
“Quando existe uma lei, como a brasileira, que criminaliza a migração de trabalhadoras do sexo a fim de ‘desbancar redes criminosas internacionais’, a única coisa que a polícia precisa fazer é prender quem ajuda a prostituta a migrar, mesmo se essa pessoa está, de fato, ajudando-a a evitar dívidas e escravidão. Não existe um programa real para atender as vítimas do tráfico, muito menos para garantir os direitos das pessoas de movimentarem-se livremente pelo mundo, sem serem exploradas. Infelizmente, um movimento que começou como tentativa de proteger e expandir os direitos humanos das migrantes está cada dia mais se transformando num dispositivo que protege valores normativos de uma sociedade baseada em relações sexuais monogâmicas, patriarcais e familiares, onde os pobres conhecem seu devido lugar”, finaliza o antropólogo.
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Veja os resultados da pesquisa “Análise do Contexto de Prostituição em Relação a Direitos Humanos, Trabalho, Cultura e Saúde no Brasil”, estudo realizado pela ABIA em parceria com a ONG DAVIDA e o Instituto Oswaldo Cruz que analisa o contexto brasileiro atual de políticas públicas relativas à prostituição e os direitos humanos. O trabalho procura traçar um quadro da situação nacional referente aos direitos humanos, trabalho, cultura e saúde, com ênfase na resposta ao HIV.
Leia também o relatório “Qual é o preço do boato? Um guia para classificar os mitos e os fatos sobre a relação entre eventos esportivos e tráfico de pessoas”. Produzido pela Global Alliance Against Trafficking in Women (GAATW), o relatório interroga criticamente os discursos e suposições dominantes acerca da correlação entre grandes eventos esportivos – que o Brasil sediará este ano (Copa do Mundo) e em 2016 (Olimpíadas) e o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual.