Europa: manifesto feminista em apoio às trabalhadoras sexuais
O manifesto que se segue foi elaborado por ocasião do Dia Internacional da Mulher (8 de março) por trabalhadoras sexuais, feministas e ativistas pelos direitos das trabalhadoras sexuais da Europa. O processo de elaboração foi coordenado pelo Comitê Internacional pelos Direitos das Trabalhadoras e dos Trabalhadores Sexuais na Europa (ICRSE).1Em setembro de 2021, o Comitê mudou seu nome para European Sex Workers’ Rights Alliance (ESWA).
O manifesto tem o objetivo de dar visibilidade ao apoio de organizações, grupos e coletivos feministas e pelos direitos das mulheres, e de indivíduos feministas, ao reconhecimento do trabalho sexual como trabalho e à descriminalização do trabalho sexual. Com os atuais debates sobre reformas das legislações sobre o trabalho sexual e ataques aos direitos reprodutivos e aos direitos das mulheres, achamos crucial aumentar a conscientização sobre a criminalização, a violência, as violações dos direitos humanos e o estigma que afetam as trabalhadoras sexuais dentro do movimento feminista como um todo. Temos a esperança de mobilizar aliadas de modo a lutarmos juntas contra as tendências negativas que afetam as mulheres as pessoas LGBT, os migrantes e as trabalhadoras sexuais na Europa e na Ásia Central.
Para contatar as autoras, escreva para feministsforsexworkers@gmail.com.
Manifesto feminista em apoio aos direitos das trabalhadoras sexuais
Como signatários deste manifesto, nós – coletivos e organizações feministas, pelos direitos da mulher e pelos direitos das trabalhadoras sexuais – expressamos nosso apoio à autodeterminação das trabalhadoras sexuais e o reconhecimento do trabalho sexual como trabalho. Com os direitos das mulheres, os direitos reprodutivos e a igualdade de gêneros ameaçados em toda a Europa e Ásia Central, estamos solidários com as trabalhadoras sexuais, que enfrentam uma miríade de formas de violência: das estruturais e institucionais às físicas e interpessoais. De modo a tratar da opressão sistemática que as trabalhadoras sexuais enfrentam, pedimos a todas as feministas que concentrem seus recursos na inclusão e na amplificação das vozes das trabalhadoras sexuais dentro do movimento e que parem de promover estruturas legais que têm se mostrado prejudiciais aos direitos das trabalhadoras sexuais.
Pedimos um movimento feminista que situe a injustiça de gênero entre as sociedades patriarcais, capitalistas e suprematistas brancas e seja inclusivo para pessoas trans e trabalhadoras sexuais. Nossos sistemas de justiça criminal são opressivos e, por isso, não vemos o policiamento mais intenso, a perseguição e a prisão como a única solução para a violência contra mulheres e pessoas trans para a desigualdade de gêneros. Acreditamos em intervenções junto à comunidade e na organização e mobilização de longo prazo para combater a complexidade da violência contra mulheres e pessoas trans, inclusive as desigualdades econômicas e a falta de serviços sociais e de redes de seguridade acessíveis.
1. Reconhecemos as trabalhadoras sexuais como especialistas sobre suas próprias vidas e necessidades.
O feminismo, como sempre fez no passado, tem que apoiar a agência e a autodeterminação das mulheres sobre seu trabalho e sobre seus corpos. As trabalhadoras sexuais não podem ser exceção.
2. Respeitamos a decisão das trabalhadoras sexuais de engajar-se em trabalho sexual.
Como feministas, rejeitamos declarações misóginas segundo as quais as trabalhadoras sexuais “vendem seus corpos” ou “se vendem”: sugerir que o sexo envolva perder ou abrir mão de parte de si mesma é profundamente antifeminista. Mulheres não são diminuídas perlo sexo. Nós também rejeitamos qualquer análise que sustente que as trabalhadoras sexuais contribuem para a”comoditização da mulher, do sexo ou da intimidade”. Não acusamos as trabalhadoras sexuais de causar dano a outras mulheres, e sim o patriarcado e outros sistemas opressivos.
3. Afirmamos a legitimidade da declaração de consenso das trabalhadoras sexuais.
Afirmar que é impossível haver consenso no trabalho sexual é negar a capacidade das trabalhadoras sexuais de determinarem suas próprias fronteiras e a capacidade de falarem contra a violência. Propagar a ideia de que os clientes “compram” os corpos ou o consentimento das trabalhadoras sexuais – e que por isso podem fazer o que quiserem com uma trabalhadora sexual – traz consequências perigosas para a vida real das trabalhadoras sexuais. Além disso, ao qualificarem todo trabalho sexual como uma forma de violência, essas ideias podem levar à repressão ao trabalho sexual em nome de combater a violência – ainda que a repressão ao trabalho sexual na verdade aumente a vulnerabilidade das trabalhadoras sexuais à violência.
4. Defendemos medidas que deem ajuda e apoio reais às vítimas do tráfico, com pleno respeito a seus direitos humanos e trabalhistas.
Assim sendo, denunciamos a fusão que se faz de migração, trabalho sexual e tráfico humano. Como resultado dessa fusão, trabalhadoras sexuais migrantes são particularmente visadas por assédios e operações policiais, detenção e deportação, e são empurradas para ambientes de trabalho clandestinos, onde são mais vulneráveis à violência e à exploração.
5. Lutamos para eliminar todas as formas de violência contra trabalhadoras sexuais.
O trabalho sexual não é uma forma de violência sexual, mas as trabalhadoras sexuais são especialmente vulneráveis à violência sexual e à violência por parte de parceiros íntimos resultantes da criminalização e de opressões que frequentemente se combinam, como sexismo, putafobia, homofobia e transfobia, racismo e classismo. A opressão e a criminalização tornam as trabalhadoras sexuais vulneráveis à violência por parte de indivíduos, serviços sociais, polícia, funcionários da imigração e o judiciário. Ver o trabalho sexual como inerentemente violento e o consenso das trabalhadoras sexuais como inválido é algo que contribui para a violência contra elas.
6. Trabalhamos todos os dias pelo fim da misoginia em todas as esferas da vida.
A misoginia, porém, não é a causa do trabalho sexual, mas surge como uma reação a atos e escolhas das mulheres, seja usar maquiagem, fazer um aborto ou vender sexo. Nós apontamos os sentimentos e atitudes misóginos como sendo o problema e rejeitamos as exortações para mudar ou eliminar comportamentos que “provoquem” a misoginia. Tentar eliminar o trabalho sexual com base no argumento de que ele supostamente provoca a misoginia é concordar com aqueles que dizem que as ações de algumas mulheres – tais como vender sexo – são intrinsecamente merecedoras da misoginia.
7. Respeitamos os direitos das migrantes.
Mulheres migrantes têm acesso limitado ao trabalho e, frequentemente, pouco ou nenhum acesso à seguridade social. Algumas daquelas que buscam refúgio vendem serviços sexuais por causa das opções muito limitadas para ganhar a vida. A criminalização dos clientes e outras formas de criminalização do trabalho sexual colocam as trabalhadoras sexuais migrantes sob ameaça constante de violência policial, prisão e deportação, negando seu acesso à justiça e a reparações. A criminalização dos clientes remove a receita delas e não lhes oferece alternativas de sobrevivência.
8. Apoiamos os direitos das pessoas LGBT.
A rejeição das pessoas LGBT por suas famílias e os obstáculos à educação e ao emprego em estruturas sociais cissisexistas e heteronormativas frequentemente tornam o trabalho sexual numa das pouquíssimas oportunidades econômicas e de emprego para pessoas LGBT, especialmente as mulheres trans.Leis contra o trabalho sexual não beneficiam pessoas LGB e trans, à medida que não tratam dessas facetas complexas da marginalização social. Este é particularmente o caso das mulheres trans, à medida que as leis que criminalizam o trabalho sexual são usadas especialmente para rotular e perseguir esse grupo, independentemente de a pessoa em questão ser ou não uma trabalhadora sexual.
9. Propomos a descriminalização completa do trabalho sexual.
Há evidências fortes de que o Modelo Sueco e todas as outras formas de criminalização do trabalho sexual prejudicam as trabalhadoras sexuais. O Modelo Sueco as empurra para a pobreza, reduz seu poder de negociar com clientes, criminaliza-as quando trabalham juntas por segurança e as expulsa e deporta. Ao permitir que as trabalhadoras sexuais se organizem como trabalhadoras, a descriminalização reduz a vulnerabilidade das trabalhadoras sexuais a práticas de exploração do trabalho e à violência.
10. Manifestamo-nos contra a precarização crescente do trabalho da mulher.
Historicamente, nas sociedades ocidentais sob o capitalismo e o patriarcado, o trabalho da mulher (trabalho doméstico, trabalho de assistência, trabalho sexual, trabalho emocional) considerado “feminino” tem sido subvalorizado, mal pago ou tornado completamente invisível e sem pagamento. Globalmente, as mulheres, inclusive as trabalhadoras sexuais, têm empregos que são menos bem pagos e mais inseguros: elas trabalham sob condições de exploração – do trabalho criminalizado, sazonal ou temporário até o trabalho doméstico, flexível ou em tempo parcial e o trabalho terceirizado, o trabalho como freelancer ou como pessoa autônoma. O trabalho sexual tem similaridades com outros tipos de trabalho assistencial, por ser associado principalmente a mulheres e, frequentemente, mulheres migrantes ou de cor. As trabalhadores da área de assistência, assim como as trabalhadoras sexuais, frequentemente não têm os mesmos direitos trabalhistas que aquelas que têm empregos mais associados aos homens. Por isso, a defesa dos direitos das trabalhadoras sexuais tem que enfatizar seus direitos trabalhistas e tratar das condições precárias de trabalho e da exploração na indústria do sexo, além de atuar por estruturas institucionais que empoderem as trabalhadoras sexuais enquanto trabalhadoras.
11. Demandamos a inclusão das trabalhadoras sexuais no movimento feminista.
Sua inclusão traz ao nosso movimento pontos de vista, energia, diversidade e experiência de mobilização inestimáveis e desafia nossas pressuposições sobre gênero, classe e raça. As trabalhadoras sexuais estavam entre as primeiras feministas do mundo, e sem elas a nossa comunidade fica diminuída.