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Carta aberta das trabalhadoras a Kamala Harris

Kim Kelly para In These Times

Tem-se falado muito sobre o contraste gritante entre a mensagem sombriamente autoritária dos republicanos e a abordagem de “guerreiro feliz” da vice-presidente Kamala Harris e seu novo companheiro de chapa, o governador de Minnesota, Tim Walz. Mas o rolo compressor Harris-Walz continua forte em vibrações e leve em propostas políticas; o site da campanha atualmente hospeda apenas as biografias dos candidatos, links para doações e engajamentos, listas de eventos e uma loja de produtos.

A percepção de maleabilidade da plataforma de Harris encorajou alguns ativistas progressistas a fazer pressão para que ela tome posições específicas. Em 7 de agosto, Harris se reuniu em Detroit com líderes do movimento Uncommitted, que pressionaram por um embargo de armas a Israel. Mas os manifestantes que pediam o fim do genocídio foram escoltados para fora de seu comício de campanha no mesmo dia; no dia seguinte, seu conselheiro de segurança nacional declarou publicamente que Harris se opõe a um embargo. Resta saber quanto potencial existe para pessoas de fora da campanha moldarem a abordagem de Harris, mas muitos grupos estão tornando públicas suas listas de desejos.

Entre eles está a SWOP Behind Bars, uma filial do projeto nacional sem fins lucrativos Sex Workers Outreach Project-USA (SWOP-USA). A SWOP Behind Bars fornece suporte legal e prático para trabalhadoras sexuais encarceradas e sobreviventes de tráfico, agressão sexual, violência de parceiros íntimos e criminalidade forçada.

Não importa qual dos candidatos acabe ocupando o Escritório Oval da Casa Branca, é uma verdade nua e crua que os trabalhadores e sobreviventes que essas organizações representam continuarão em risco de exploração, abuso e coisas piores. Mas em uma carta aberta para Harris datada de 30 de julho, assinada por profissionais do sexo e por defensores de trabalhadoras sexuais e vítimas de tráfico, a SWOP Behind Bars expôs sua visão de como um governo Harris poderia controlar a repressão, a criminalização e perigos generalizados que a categoria enfrenta.

Com um olhar para as posições prejudiciais à categoria adotadas no passado por Harris, as organizadoras escreveram: ​“Há algumas preocupações que precisamos abordar antes de entrar na cabine de votação e marcar o quadrado ao lado do seu nome.”

FOSTA-SESTA: Colocando as trabalhadoras em perigo

A primeira entre suas preocupações foi o apoio de Harris como senadora a um pacote de leis desastrosas aprovadas em 2018, durante o governo de Donald Trump: a Fight Online Sex Trafficking Act (“lei de combate ao tráfico sexual online”) e a Stop Enabling Sex Traffickers Act (“lei para deter os traficantes de sexo”), que juntas são coloquialmente conhecidas como FOSTA-SESTA. Embora essas leis tivessem como objetivo combater o tráfico sexual, pesquisas extensivas, bem como as experiências vividas pelos trabalhadores do sexo, mostraram que a FOSTA-SESTA na verdade prejudicou as pessoas que pretendia ajudar.

A FOSTA-SESTA alterou a Seção 230 da Communications Decency Act (“lei da decência nas comunicações”), de 1996, para permitir que plataformas da internet fossem responsabilizadas por hospedar conteúdo anunciando serviços sexuais. Como resultado, sites como Backpage e CraigslistPersonals, que os trabalhadores sexuais usavam há muito tempo para anunciar, foram retirados do ar. Isso foi desastroso, porque a proibição dessas páginas não apenas limitou a publicidade, mas também restringiu uma das principais formas pelas quais as trabalhadoras do sexo compartilhavam informações, selecionavam clientes em particular e trabalhavam por conta própria.

“A capacidade de trabalhar de forma independente on-line reduzia a necessidade de profissionais do sexo em situação financeira difícil de trabalhar nas ruas ou por meio de agências exploradoras ou de terceiros”, explicaram os pesquisadores independentes Danielle Blunt e Ariel Wolf em seu relatório de 2020, “Erased: The impact of FOSTA-SESTA and the removal of Backpage on sex workers” (“o impacto da FOSTA-SESTA e da remoção do Backpage sobre as trabalhadoras sexuais”), publicado na Anti-Trafficking Review. “Trabalhar on-line anteriormente não apenas permitia que as profissionais do sexo mitigassem os danos, mas também fornecia algum grau de segurança financeira.”

Após a proibição, as profissionais do sexo foram forçadas a encontrar meios alternativos de se comunicar com os clientes e planejar encontros, incluindo trabalhar com cafetões que buscavam controlá-las e explorá-las. Sem a capacidade de filtrar clientes potencialmente perigosos, as trabalhadoras passaram a ter que marcar atendimentos da maneira que pudessem, cruzar os dedos e torcer para voltar do trabalho ilesas. Como uma entrevistada da pesquisa disse a Blunt e Wolf, “Tudo o que sei sobre estar segura no trabalho sexual é porque pude falar com outras profissionais do sexo on-line.”

A legislação FOSTA-SESTA mudou isso, e o trabalho de Kamala Harris como principal promotora da Califórnia foi um grande precursor. Harris foi atrás do Back​page​.com com entusiasmo, prendendo o CEO da empresa por acusações de proxenetismo em 2016. (As acusações foram posteriormente rejeitadas.) Seu processo, junto com outro no Texas e uma investigação paralela do Senado, levaram a acusações federais e ao fechamento do site pelo FBI em 2018.

Nesse ínterim, o Backpage se tornou o bicho-papão visado pela FOSTA-SESTA quando os projetos de lei foram apresentados em 2017. Como senadora, Harris não esteve publicamente envolvida na elaboração ou no avanço desses projetos de lei; em vez disso, supostamente lidava com negociações nos bastidores com a oposição na indústria de tecnologia. Eventualmente, ela assinou como copatrocinadora a versão do Senado, a SESTA.

A senadora pode ter acreditado que suas intenções eram boas, mas o impacto que a FOSTA-SESTA teve sobre trabalhadores sexuais é devastador — e não há evidências de que tenha causado um impacto significativo na redução do tráfico sexual.

“A SESTA inadvertidamente encorajou o abuso que buscava erradicar, como acontece frequentemente quando as regulamentações trabalhistas são aprovadas sem consultar os trabalhadores sobre a melhor forma de combater a exploração”, declara a organização nacional Decriminalize Sex Work em seu site. “Se essa lei teve um efeito nas taxas de tráfico nos Estados Unidos, evidentemente só aumentou os riscos que trabalhadores do sexo e sobreviventes do tráfico enfrentam.”

A carta do SWOP Behind Bars trouxe à tona outro episódio decepcionante da gestão de Harris como a principal policial da Califórnia, quando ela supostamente ignorou o abuso sexual desenfreado cometido por membros do Departamento de Polícia de Oakland contra uma trabalhadora sexual menor de idade. Em 2016, uma adolescente usando o pseudônimo Celeste Guap tornou público seu tratamento nas mãos de dezenas de policiais de Oakland, que sabiam que ela era uma trabalhadora do sexo e se aproveitaram de sua posição para iniciar contatos sexuais. Seu advogado apelou repetidamente ao gabinete da procuradora-geral, pedindo que ele interviesse nesse caso complexo, mas nenhuma resposta veio.

“Celeste tentou denunciar vários policiais, alguns dos quais ela alegou terem feito sexo com ela enquanto ela era menor de idade, e você não tomou medidas suficientes para investigar ou responsabilizar os policiais envolvidos”, escreveu o SWOP Behind Bars. ​“O caso é um exemplo significativo do potencial de abuso de poder e da importância da responsabilização e transparência no policiamento, mas você nunca fez uma declaração pública sobre isso, e isso é preocupante.”

A carta da organização termina com uma lista de reivindicações para uma possível futura administração Harris considerar.

Trabalho sexual é trabalho

No topo da lista está um apelo claro pela descriminalização total do trabalho sexual. “Trabalho sexual adulto consensual e tráfico são questões distintas”, explica a carta. “A criminalização do trabalho sexual adulto consensual nos empurra para as sombras, nos tornando vulneráveis à violência, à exploração e a abusos de direitos humanos.”

Em uma entrevista de 2019 com The Root, Harris foi questionada diretamente sobre se ela apoiava a descriminalização. “Eu acho que sim; eu apoio”, ela respondeu. “Quando falamos sobre adultos com consentimento, acho que sim, devemos realmente considerar que não podemos criminalizar o comportamento consensual, desde que ninguém esteja sendo prejudicado. Mas no ponto em que alguém está sendo prejudicado ou explorado, temos que entender que isso é uma questão diferente.”

A declaração mostrou uma evolução marcante desde 2008, quando Harris atuou como promotora pública em San Francisco e rejeitou a ideia de descriminalização, dizendo que a medida daria boas-vindas a ​“cafetões e prostitutas para entrarem” na cidade. Então, talvez aqui esteja o potencial para um movimento em direção à descriminalização total e para longe de uma posição mais alinhada com o chamado Modelo Nórdico, que trata os clientes das trabalhadoras sexuais como criminosos. Em um relatório abrangente de 2016, a Anistia Internacional concluiu que a criminalização de clientes pela Noruega, sete anos antes, havia levado ao policiamento de trabalhadoras sexuais e a “um aumento do risco de estigmatização, marginalização e violência”.

Outros pedidos da carta dizem respeito à melhoria das condições de trabalho das trabalhadoras sexuais e ao enfrentamento dos riscos que elas enfrentam de clientes, aplicação da lei, estigma e discriminação. A proteção contra violência e exploração é uma grande prioridade, e o SWOP Behind Bars pede leis mais fortes para responsabilizar os abusadores e treinamento adequado para a aplicação da lei para melhorar seu comportamento em relação à comunidade e criar vias seguras e respeitosas para denunciar abusos.

O mesmo estigma que complica o relacionamento das trabalhadoras sexuais com a polícia — que (teoricamente) deveria oferecer proteção — também pode perseguir as trabalhadoras sexuais em ambientes de assistência médica e serviços sociais, especialmente para aquelas que têm múltiplas identidades marginalizadas. “Precisamos de políticas que garantam nosso direito à saúde, incluindo assistência médica inclusiva e sem julgamentos, suporte à saúde mental e serviços sociais”, escreve o grupo. “Isso inclui abordar as necessidades específicas das trabalhadoras sexuais transgênero, que enfrentam camadas adicionais de marginalização e disparidades de saúde.”

Além disso, o grupo toma distância para enfatizar a necessidade de justiça econômica e direitos trabalhistas, observando que muitas trabalhadoras sexuais se envolvem na indústria devido à falta de oportunidades econômicas e desigualdades sistêmicas, e pede a Harris que aborde essas causas básicas. “Reconhecer o trabalho sexual como trabalho legítimo também significa garantir nossos direitos trabalhistas, incluindo o direito de organização, de sindicalização e de trabalhar em condições justas”, acrescenta a carta, sabiamente vinculando a falta de representação dos trabalhadores em movimentos trabalhistas organizados com sua exploração mais ampla.

Embora muitas trabalhadoras do sexo sejam classificadas como contratadas independentes e, portanto, inelegíveis para se sindicalizar formalmente, algumas não apenas podem, mas se organizaram para negociação coletiva. Na década de 1990, quando as trabalhadoras do Lusty Lady, em San Francisco, se sindicalizaram com sucesso com o SEIU, apoiadas pela Organização Nacional para Mulheres e uma forte comunidade local de defesa do trabalho sexual, elas foram exceções. Outras campanhas sindicais de trabalhadoras do sexo em todo o país foram vítimas de uma destruição bem-sucedida de sindicatos. Mas as trabalhadoras conquistaram mudanças por meio de outros tipos de organização, incluindo advocacia legislativa; apenas em março deste ano, em Washington, o grupo de defesa Strippers Are Workers ganhou uma Declaração de Direitos das Strippers que cria novas proteções necessárias para as dançarinas do estado. E a recente onda de sindicalização varreu a indústria do trabalho sexual: a partir de 2023, o Star Garden em Hollywood, Califórnia, e o Magic Tavern de Portland, Oregon, agora são representados pela Actors’ Equity Association, um sindicato de 50 mil membros para profissionais de performance ao vivo.

Por fim, a carta pede que Harris faça algo para lidar com a putafobia, narrativas prejudiciais e estigma geral que os profissionais do sexo enfrentam, observando que a linguagem e as políticas desumanizadoras aumentam a probabilidade de que esses profissionais sofram discriminação e violência.

Qualquer administração ou político que diga se importar com trabalhadores vulneráveis deve deixar claro que inclui os profissionais do sexo nessa categoria — e ouvi-los quando eles explicam o que sua comunidade precisa. A tribuna presidencial é uma ferramenta poderosa, e o SWOP Behind Bars espera um futuro em que a presidente Harris, caso seja eleita. a use para reconhecer seu trabalho como legítimo e enfatizar o respeito e a dignidade que todos os trabalhadores merecem. Como eles escreveram: “Precisamos saber que nossas vidas são importantes para vocês e que vocês estão comprometidos em aprender com os erros do passado.”

Dado o histórico de Harris, não seria surpreendente que os defensores fossem mais agressivos, mas o comunicado do SWOP Behind Bars mantém um tom respeitoso, até mesmo amigável — ao mesmo tempo em que lembra Harris de que milhões de trabalhadores sexuais estarão observando atentamente à medida que o Dia da Eleição se aproxima.

“Há uma estimativa de 2 milhões de profissionais do sexo criminalizadas e outros 2 milhões de criadores de conteúdo online (isso é muito voto!), que precisam saber que você será inclusiva e respeitosa em relação à segurança e à dignidade deles”, diz a carta. ​“Vemos você chegando tão perto de apoiar nossa autonomia corporal — mas gostaríamos de ajudá-la a estruturar sua narrativa para garantir que façamos progresso nessa questão tão importante.”

Graças ao trabalho público de organizações como SWOP Behind Bars, SWOP-USA e outras, ninguém — nem mesmo alguém trabalhando em uma campanha presidencial de alto perfil — pode fingir que não recebeu a mensagem. Agora, cabe a Harris provar que se importa o suficiente para ouvir.


Kim Kelly é uma jornalista freelancer e escritora que mora em Filadélfia, Pensilvânia. Ela cobre questões trabalhistas para o In These Times, é colunista da Teen Vogue e da Fast Company e contribui regularmente para muitas outras publicações. Seu primeiro livro, Fiight Like Hell: The Untold History of American Labor, já está disponível na One Signal/​Simon & Schuster. Este artigo é reproduzido com permissão da revista In These Times (© 2024); o original está disponível aqui.


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