debate

6. Sexualidade, alienação e capitalismo

Sheila McGregorInternational Socialism, número 130 – 5 de abril de 2011

As últimas edições deste periódico viram um debate se desenvolver sobre a atitude marxista em relação ao trabalho sexual.1Decidi usar o termo “trabalho sexual” pelos mesmos motivos que Jane Pritchard – para evitar qualquer indício de condenação moral, mas sem implicar que “trabalho sexual” seja “um trabalho como qualquer outro” (Pritchard, 2010). O artigo original de Jane Pritchard, intitulado “O debate sobre o trabalho sexual”,2Pritchard, 2010. provocou uma resposta crítica de Gareth Dale e Xanthe Rose.3Dale e Rose, 2010a. Jess Edwards respondeu a essas críticas em seu artigo “Sexismo e trabalho sexual”,4Edwards, 2010. ao qual Dale e Rose responderam por sua vez.5Dale e Rose, 2011b

O artigo de Pritchard abordou duas posições opostas sobre o trabalho sexual, “abolicionismo” e “descriminalização”. Ele também criticou a visão de que vender sexo é “um trabalho como qualquer outro”.6Pritchard, 2010. Pritchard, Edwards, Dale e Rose concordaram em que o trabalho sexual não pode ser “abolido” sob o capitalismo. Todos concordaram que as atividades tanto das trabalhadoras sexuais quanto de seus clientes devem ser descriminalizadas. Todos concordaram que o trabalho sexual é uma consequência da opressão das mulheres, alienação e sociedade capitalista.

A discordância é sobre a natureza da sexualidade e da identidade humanas.7Dale e Rose, 2010a. Dale e Rose acreditam que os argumentos de Pritchard “baseiam-se em uma visão idealizada da atividade sexual como inextricável de nossos eus essenciais e interiores”.8Dale e Rose, 2010a. Pritchard diz que o sexo “faz parte de nossa natureza humana, uma experiência que pode ser gratificante e uma parte central da identidade de um indivíduo”,9Pritchard, 2010. enquanto Dale e Rose argumentam que “a identidade central de um indivíduo — seja ela qual for — pode muito bem incluir sua sexualidade, mas certamente não pode ser ampla o suficiente para incluir todos os atos sexuais em que se envolvem”.10Dale e Rose, 2010. Esta formulação é cercada por tantas qualificações que revela as próprias incertezas dos autores. Algumas perguntas são necessárias. Se a sexualidade não faz parte da nossa natureza humana, como ela surge e por quê? Como a raça humana evoluiu e continuou a se reproduzir se isso não faz parte da nossa natureza humana? Ou Dale e Rose estão de fato postulando algum tipo de dualismo, com um “instinto sexual” para garantir a reprodução e uma dimensão adicional que podemos chamar de “sexualidade”?

Se Dale e Rose estiverem certos de que a sexualidade não é fundamental para a natureza humana, então não apenas Pritchard errou, mas eu também em 1989, Chris Harman em 1994 e Judith Orr em 2010 — sem mencionar escritores marxistas importantes como Friedrich Engels, August Bebel e Alexandra Kollontai. Não se trata de dizer que “a tradição deve estar certa”, mas de indicar que há uma questão fundamental em jogo aqui — uma questão que explica, creio eu, a raiva na resposta de Edwards a Dale e Rose e a sua resposta igualmente irada.11Talvez um pouco de cuidado seja necessário – todos nós estamos comprometidos em lutar contra a opressão das mulheres e por um mundo sem relacionamentos opressivos, incluindo o trabalho sexual.

Portanto, há uma necessidade de estabelecer uma compreensão mais clara da sexualidade humana e sua interação com a alienação e a opressão das mulheres.12Acredito que Pritchard apresentou uma análise clara e correta, então, de muitas maneiras, estarei reafirmando muito do que ela já argumentou. No entanto, Pritchard não poderia ter previsto que o desacordo surgiria em torno da questão da sexualidade e da natureza humana. Daí a necessidade de desenvolver esse argumento ainda mais, bem como abordar a mudança fundamental no lugar do sexo na sociedade capitalista nos últimos 20 anos. Também precisamos entender como as condições econômicas neoliberais prevalecentes desde a década de 1990 moldaram as relações sexuais humanas, incluindo a ascensão do trabalho sexual. Esta análise tem implicações profundas para o desenvolvimento da resposta marxista à “normalização” da indústria do sexo. Ela também, eu diria, afeta diretamente nossa visão de uma futura sociedade socialista.

Sexualidade e pré-história humana

Na década de 1980, socialistas revolucionários se opuseram a argumentos feministas radicais que presumiam que os homens eram por natureza agressivos e violentos, e que o estupro era uma arma usada por homens para oprimir as mulheres.13Veja meu artigo, McGregor, 1989. Os argumentos hoje são muito diferentes, mas ainda apresentamos uma análise da sexualidade humana enraizada em uma compreensão materialista do desenvolvimento da sociedade humana e, portanto, da natureza humana.14Para uma análise mais longa disso e referências, veja McGregor, 1989, e também Kollontai, 2022 [1923]. Eu tomo o fato do comportamento sexual como um dado, uma vez que a evolução da humanidade não teria sido possível sem ele. O processo evolutivo que deu origem aos humanos modernos também moldou e deu origem à sexualidade humana.

A sexualidade retratada em vaso da Grécia antiga

A abordagem de Marx e Engels para entender a sociedade humana foi baseada na análise da organização da produção e reprodução da vida humana. Os meios pelos quais homens e mulheres asseguram sua existência moldam o desenvolvimento do comportamento humano, incluindo o comportamento sexual. Engels argumentou ainda que o trabalho foi o motor crucial para a transição do macaco para o homem.15Engels, 2019 [1884]. Os seres humanos se desenvolveram ao longo de vários milhões de anos como “fabricantes de ferramentas culturais”, como seres sociais que cooperavam e se comunicavam entre si para garantir sua sobrevivência.16Uma definição popularizada em Duncan Hallas em reuniões ao longo da década de 1980.

Harman apontou que os padrões de comportamento sexual estavam mudando entre os macacos pigmeus (nossos primos mais próximos) até quatro milhões de anos atrás. Macacos pigmeus fêmeas usam gestos para indicar como querem sexo. Elas são capazes de iniciar a atividade sexual.17Harman, 1994. Ele argumentou ainda que a maior organização social exigida de nossa espécie “provavelmente explica a mudança no padrão da sexualidade feminina, encorajando laços permanentes entre os sexos em vez do acoplamento frenético concentrado em torno de alguns dias por mês encontrado no chimpanzé comum”.18Harman, 1994. Se o trabalho, a cultura e a fabricação de ferramentas impulsionaram a transição do macaco para o humano, isso implicou uma mudança na sexualidade e nas relações sexuais ao longo do caminho.

Engels argumentou que os seres humanos pré-históricos viviam em sociedades sem divisão de classes, opressão estatal ou desigualdade entre homens e mulheres.19Engels, 2019 [1884]. Havia uma divisão sexual do trabalho entre homens e mulheres, mas nenhuma opressão das mulheres pelos homens. Essa visão foi posteriormente apoiada por vários antropólogos marxistas e feministas. Eles estão de acordo em que os seres humanos evoluíram como pequenos bandos de caçadores-coletores, nos quais homens e mulheres cooperavam para garantir a existência do bando.20Para uma revisão completa de Engels e uma atualização de sua análise, veja Harman, 1994. Para os propósitos da discussão aqui, se Engels estava certo em todos os seus argumentos não é pertinente. Esses bandos foram observados até meados do século XX e exibem características como cooperação, ausência de hierarquia e relações igualitárias entre homens e mulheres. Esse igualitarismo sexual estava enraizado no fato de que tanto a coleta (geralmente feita por mulheres) quanto a caça (geralmente feita por homens) contribuíam para a existência bem-sucedida do bando.21A caça era geralmente um assunto coletivo, às vezes envolvendo mulheres. Certas tribos de caçadores-coletores norte-americanas aceitam uma fluidez sobre papéis de gênero, em que uma criança poderia adotar um papel de gênero diferente de seu sexo biológico.22Veja McGregor, 1989.

Então, o comportamento sexual humano se desenvolveu em um ambiente igualitário e cooperativo. Provavelmente teria sido consensual por natureza. Como os seres humanos não estão restritos a “acasalar” apenas em certas épocas do ano, a sexualidade humana parece ter evoluído com um aspecto prazeroso, desconectado das necessidades diretas de reprodução do bando. As primeiras sociedades humanas não eram subordinadas à disciplina do relógio. Homens e mulheres teriam tido um grau de tempo de lazer que permitiria que relacionamentos mais relaxados se desenvolvessem entre todos os membros do grupo.23Marshall Sahlins apresenta esse argumento em Sahlins, 2003. Se o trabalho foi o motor para nossa emergência como uma espécie distinta, também evoluímos com uma capacidade de prazer sexual.

Esta não é uma “visão idealizada da sexualidade humana como inextricável de nossos eus essenciais e internos”, como Dale e Rose sugerem.24Dale e Rose, 2010. Pelo contrário, é uma visão materialista que parte do fato da evolução e incorpora nosso desenvolvimento na produção e reprodução da vida humana por meio da interação com a natureza. Nascemos com a capacidade de ver, ouvir, cheirar, tocar e saborear. Mas como fazemos essas coisas depende da sociedade em que crescemos. Nascemos com a capacidade de falar, mas quais línguas aprendemos depende de quais são usadas onde crescemos. E assim é com a sexualidade humana.

Opressão das mulheres e sociedade de classes

As relações igualitárias entre os sexos que caracterizaram a pré-história humana chegaram ao fim com o desenvolvimento da agricultura. Engels argumenta que a opressão das mulheres estava ligada à ascensão da sociedade de classes e da família.25Engels, 2019 [1884]. As mulheres eram subordinadas aos homens, assim como a maioria dos homens e mulheres era subordinada a uma classe dominante. Essa mudança histórica destruiu laços baseados em igualdade e solidariedade. Ela remodelou nossas relações pessoais de acordo com as necessidades das sucessivas sociedades de classes.

Hannah Dee oferece uma visão geral das variedades de relações pessoais antes da ascensão do capitalismo para mostrar que as relações homossexuais tinham um status importante em épocas anteriores.26Dee, 2010. Alexandra Kollontai tem algumas reflexões interessantes sobre os diferentes tipos de amor na sociedade feudal.27Kollontai, 2022 [1923]. Mas há um fio condutor comum que atravessa sociedades de classes sucessivas: a família, a opressão das mulheres e a subordinação da sexualidade das mulheres às necessidades reprodutivas da sociedade.

A ascensão da sociedade capitalista desencadeou uma nova série de mudanças dramáticas, embora contraditórias, nas relações sexuais humanas. Em seus estágios iniciais, o capitalismo destruiu a família feudal como uma unidade produtiva, pois milhares, depois milhões, foram atraídos para as novas minas e fábricas. Tal foi o impacto na velha sociedade que Marx e Engels previram o fim da família para a nova classe trabalhadora. Eles foram provados errados inicialmente, pois a nova classe burguesa fez campanha pela reconstrução da família. Essa nova família da classe trabalhadora era necessária para garantir a reprodução da classe trabalhadora. Seria o lugar onde a próxima geração de trabalhadores nasceria e seria criada até que eles, por sua vez, entrassem no processo de produção. Essa família reconstituída foi parcialmente bem-vinda pela classe trabalhadora como uma defesa contra os estragos da industrialização.28McGregor, 1989. Mas o restabelecimento da família veio com uma série de leis para estabelecer os parâmetros das relações sexuais:

A Emenda à Lei dos Pobres de 1834, ao proibir o lazer ao ar livre para mulheres solteiras, ajudou a quebrar padrões anteriores de sexo pré-marital. Outras leis na década de 1880 aumentaram a idade de consentimento para meninas, regulamentaram a obscenidade, a prostituição e a homossexualidade e foram parte de um esforço para estabelecer o leito conjugal como o único lugar legítimo para relações sexuais, pelo menos para mulheres.29McGregor, 1989.

A família da classe trabalhadora mais uma vez subordinou as mulheres aos homens, garantindo que a opressão das mulheres continuasse. Ela consagrou papéis de gênero segregados, com o fardo da reprodução no lar caindo sobre os ombros das mulheres. Isso, por sua vez, levou à discriminação dentro e fora de casa: em termos de direitos legais, remuneração desigual e discriminação sexual. As mulheres também deveriam atender às necessidades sexuais dos homens.

No entanto, a base da família mudou decisivamente, de uma unidade de produção sob o feudalismo para uma unidade de consumo sob o capitalismo. Isso também mudou a base da parceria entre homens e mulheres para o que Engels chamou de “amor sexual individual”. “Na sociedade capitalista moderna, o casamento e seus relacionamentos de direito comum equivalentes são celebrados livremente por homens e mulheres com base na atração mútua”, escreveu ele.30Veja McGregor, 1989.

A “esposa tradicional” da classe média americana nos anos 1950

A produção em massa de bens domésticos, acompanhada de publicidade em massa, logo se concentrou nas mulheres como consumidoras de bens domésticos. As mulheres também foram encorajadas a ver o sexo e sua aparência física como um meio de manter o interesse de seus maridos: “As mulheres foram cada vez mais pressionadas a tornar-se autoconscientes sobre seus corpos e aparência. Beleza e sensualidade se tornaram subordinadas ao consumo e ao nexo monetário”.31McGregor, 1989. Não devemos subestimar a enorme mudança que isso significou para a maioria das mulheres. Suas decisões sobre o que comprar de repente se tornaram importantes. E elas foram encorajadas a ter uma aparência e ser sexualmente atraentes. As mulheres como consumidoras estavam sendo escritas no roteiro da sociedade — e seus corpos também.

Mas havia outras tendências de longo prazo na sociedade capitalista que minavam a existência contínua da família da classe trabalhadora como uma unidade com pai, mãe e filhos. Essas mudanças alimentaram uma massa de contradições na posição das mulheres na sociedade. Elas tiveram profundas repercussões na sexualidade de homens e mulheres.

A mudança mais importante foi a maneira como as mulheres da classe trabalhadora — nunca totalmente ausentes do processo de produção — foram sistematicamente atraídas para o trabalho remunerado fora de casa. Como Orr aponta: “Hoje, a maioria das mulheres adultas na Grã-Bretanha (71%) trabalha fora de casa… As mulheres são quase 50% da força de trabalho na Grã-Bretanha”.32Orr, 2010. Essa independência econômica das mulheres em relação aos homens sustenta o aumento do divórcio, o declínio do casamento e o número crescente de famílias monoparentais.

Outra mudança importante foi o advento da contracepção segura e do aborto legal. Isso deu às mulheres a capacidade de planejar o momento e o número de filhos que escolhem ter, levando a famílias menores iniciadas mais tarde na vida. A contracepção e o aborto separaram ainda mais o sexo da reprodução e abriram a possibilidade de relacionamentos sexuais baseados no prazer sem medo de gravidez. Outra mudança é o advento da educação em massa, que transfere parcialmente as tarefas de socialização e treinamento de jovens da família para o Estado. Enquanto isso, o mercado assumiu quase inteiramente a tarefa de produzir bens para serem usados pela família.

Ascensão e queda do Movimento de Libertação das Mulheres

Os anos seguintes à Segunda Guerra Mundial viram a entrada em massa de mulheres no trabalho remunerado fora de casa e a educação em massa de mulheres jovens ao lado de homens na universidade. A moralidade conservadora que dominou a década de 1950 logo começou a entrar em conflito com as aspirações das mulheres da classe trabalhadora e das estudantes.33A Segunda Guerra Mundial viu uma grande interrupção nos relacionamentos “normais”, pois noivos e maridos foram para a guerra, talvez para nunca mais voltar. Isso deu às mulheres atraídas para o trabalho produtivo uma margem de independência e liberdade em relacionamentos pessoais que elas não teriam encontrado de outra forma. Também causou dificuldades para muitas quando a vida familiar “normal” foi restabelecida após 1945. Esses conflitos, que finalmente deram origem ao Movimento de Libertação das Mulheres, surgiram no final da década de 1960, ao lado de outros movimentos de libertação.34Este período de revolta foi amplamente documentado em outros lugares. Veja Harman, 1988 e Orr, 2010.

As principais reivindicações do Movimento de Libertação das Mulheres eram por salários iguais, creches que funcionassem 24 horas por dia, fim da discriminação sexual e direito ao aborto e à contracepção.35Prefiro usar o termo Movimento de Libertação das Mulheres em vez de “feminismo de segunda onda” porque é um termo mais preciso para o desenvolvimento do movimento na década de 1960. O último termo me parece estar associado ao enterro da ideia de que uma mudança social fundamental é necessária para se livrar da opressão das mulheres. Em qualquer caso, “feminismo de segunda onda” me lembra anúncios de estilo de cabelo. Além disso, o Movimento de Libertação das Mulheres desafiou os estereótipos de gênero em torno de capacidade intelectual, empregos e sexualidade. Os fundamentos para esse desafio foram bem preparados de inúmeras maneiras: sexo e sexualidade passaram a ser discutidos mais abertamente no domínio público; mulheres jovens ganharam o direito de usar saias mais curtas se assim o desejassem e cortaram o cabelo mais curto. Homens jovens estabeleceram seu direito de usar o cabelo mais longo e ambos os sexos estabeleceram uma tendência de usar jeans azul. Elas queriam ter controle sobre a aparência de seus próprios corpos, sua sexualidade e sua capacidade reprodutiva também.

Mulheres jovens não queriam apenas abertura para empregos reservados para homens, mas também poder ter relações sexuais fora do casamento em igualdade de condições com os homens sem ser vistas como “vagabundas”.36Estudantes tiveram que fazer campanha para poderem usar os quartos uns dos outros à noite. Foi criado um espaço no qual a sexualidade feminina poderia ser seriamente discutida por mulheres e homens, incluindo como as mulheres atingiam o orgasmo. As mulheres jovens começaram a exigir o direito ao prazer sexual, apoiadas pelo trabalho de Masters e Johnson, embora tenha sido necessário que Shere Hite estabelecesse que “a maioria das mulheres não atingia o orgasmo por meio da relação sexual, mas por meio da estimulação do clitóris”.37McGregor, 1989. Os estereótipos de gênero começaram a diminuir, abrindo possibilidades para mulheres e homens realizarem seu potencial mais em sintonia com sua individualidade do que de acordo com seu sexo. Pois, se a opressão das mulheres restringia seriamente o desenvolvimento das mulheres, também restringia o dos homens.

Na mesma época, na Grã-Bretanha, uma classe trabalhadora cada vez mais confiante estava vencendo batalhas importantes contra os empregadores e o governo da época. A solidariedade da classe trabalhadora se expressava por meio do respeito às linhas de piquete, coletas e ações de greve solidárias. E essa experiência de solidariedade da classe trabalhadora também permitiu que socialistas e feministas convencessem amplas camadas do movimento sindical dominado pelos homens de que as mulheres tinham o direito de controlar sua sexualidade por meio do acesso ao aborto e à contracepção.38 A ligação entre a solidariedade da classe trabalhadora e o combate ao sexismo foi ilustrada durante a Grande Greve dos Mineiros de 1984-1985. Um canto comum dos mineiros na primeira grande manifestação em Mansfield era “Mostrem seus peitos para os mineiros” (dirigido às policiais mulheres). Na época, comentei com as pessoas ao meu redor que, com atitudes como essa, os mineiros nunca venceriam. No entanto, no final da greve, esses mesmos mineiros estavam transformados. As esposas dos mineiros se tornaram centrais para organizar a solidariedade. A Manifestação de Libertação Gay em 1985 foi liderada por uma faixa dos mineiros.

Embora muitas dessas mudanças no papel das mulheres tenham se mostrado duradouras, muitas outras ideias sobre a libertação das mulheres foram perdidas à medida que o otimismo dos movimentos em torno de 1968 recuou. A reação contra a libertação das mulheres veio de várias direções e foi sustentada por desenvolvimentos mais amplos na sociedade como um todo. Os desafios da classe trabalhadora aos controles salariais e às leis sindicais foram minados no final da década de 1970, levando eventualmente ao governo conservador de Margaret Thatcher.

À medida que a solidariedade da classe trabalhadora enfraquecia, uma camada de feministas começou a argumentar que as raízes da opressão das mulheres estavam na biologia dos homens, com o estupro como a arma escolhida para manter a submissão das mulheres. Mais vozes tradicionais apresentaram a visão de que as demandas do movimento das mulheres geraram uma “crise” na masculinidade. Houve também um ressurgimento na noção de que o comportamento humano poderia ser explicado por referência aos nossos genes ou cérebros, o que alimentou a visão de “meninos são assim mesmo”, de que os estereótipos de gênero são inatos.

Trabalhadora metalúrgica em fábrica da Curtiss-Wright, 1944

No final da década de 1980, o ressurgimento do sexismo masculino ocorreu depois que os laços que conectavam o feminismo às ideias sobre socialismo e libertação das mulheres foram cortados. A reação contra o “politicamente correto”, perseguida por políticos de direita e pela mídia de direita, não teve sucesso em “levar as mulheres de volta para casa”, mas contribuiu para reabilitar o sexismo masculino e a ideia de diferenças fundamentais de gênero.

Neoliberalismo e sexualidade

No entanto, esse contexto não explica a normalização mais recente da indústria do sexo, que envolve a participação e aceitação de milhões de mulheres. Como Orr argumenta, parte da explicação está em como a “cultura obscena” foi vendida como algo empoderador: “Ela reflete e absorveu a história e a linguagem das lutas das mulheres para ter o direito de afirmar suas necessidades e desejos sexuais, para ser mais do que meros objetos para o prazer dos outros, tanto melhor para continuar esse processo”.39Orr, 2010.

A maneira como o “sexo” se tornou uma mercadoria é igualmente central para esse processo de normalização. Um aspecto da nossa natureza humana — nossa sexualidade — foi alienado de nós, desumanizado, reembalado e vendido de volta para nós.40Esses pontos foram amplamente expressos por Pritchard, 2010. E essa sexualidade alienada é moldada pela opressão das mulheres. É por isso que a indústria do sexo envolve esmagadoramente a venda de imagens de corpos femininos e serviços sexuais fornecidos por mulheres.41Uma proporção da indústria do sexo é dedicada a atender clientes mulheres por meio de agências de acompanhantes e prostitutas de rua. Há também travestis envolvidas no trabalho sexual. A pornografia é muito usada por mulheres e crianças. Mas embora muitos dos usuários de pornografia possam ser meninas e mulheres, seu conteúdo é sobre o uso de mulheres como objetos sexuais para satisfazer homens.

Essa indústria é extremamente lucrativa, gerando uma receita estimada de US$ 57 bilhões por ano em todo o mundo, com US$ 20 bilhões por ano vindos de vídeos adultos e US$ 11 bilhões por ano de serviços de acompanhantes. A receita da pornografia é maior do que a de todas as franquias profissionais de futebol, beisebol e basquete juntas.42Veja o site da Cross Cultural Connections, mas o documento com estatísticas já não está disponível; de qualquer modo, observe que todas essas estatísticas são difíceis de verificar, pois grande parte da indústria do sexo é ilegal. Isso foi acompanhado por uma “infiltração implacável de valores, imagens, comportamento e vestimenta do mundo da venda de sexo por dinheiro na cultura e sociedade dominantes”. Isso, por sua vez, alimenta diretamente o argumento de que vender sexo e corpos femininos é “apenas mais um trabalho”.43Orr, 2010.

Por que isso aconteceu? A chave está no impacto do neoliberalismo sobre a sexualidade em um contexto de rápidas mudanças na família da classe trabalhadora e um movimento enfraquecido da classe trabalhadora, onde a solidariedade de classe não é mais a norma.44A ausência de luta e solidariedade da classe trabalhadora pode, é claro, mudar muito rapidamente.

Orr e Pritchard apontam corretamente para a resiliência contínua da família da classe trabalhadora tanto como meio de reprodução da classe trabalhadora quanto como um ideal para as mulheres da classe trabalhadora. A reprodução privatizada, ou seja, a família, é, afinal, a fonte da opressão das mulheres. Mas essa não é toda a história. O neoliberalismo minou a família da classe trabalhadora — e isso ajuda a explicar a facilidade com que a sexualidade se tornou mais profundamente alienada e mercantilizada.

As mudanças nos relacionamentos sexuais nos últimos 40 anos foram enormes. O sexo não se limita mais ao casamento. Meninos e meninas amadurecem mais cedo e começam as relações sexuais mais cedo. As mulheres estão escolhendo ter filhos mais tarde. Cada vez mais as mulheres optam por não ter filhos. O divórcio é muito mais fácil. Mais pessoas estão escolhendo viver com um parceiro ou uma série de parceiros. Os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo são aceitos de uma forma que era impensável algumas décadas atrás. Algumas pessoas mudam sua orientação sexual ao longo da vida, enquanto outras são bissexuais.

Uma consequência dessas mudanças é que mulheres e homens têm uma gama muito maior de escolhas em seus relacionamentos. Outra é que em relacionamentos de longo prazo, sejam os casais casados ou não, os indivíduos podem pelo menos procurar por amor sexual e companheirismo (o que Engels chamou de “amor sexual individual”) mesmo que tais relacionamentos não sejam viáveis a longo prazo. Tudo isso significa que a experiência sexual das pessoas é muito mais variada do que costumava ser.

Mas isso também deve ser visto em um cenário de estresse da vida da classe trabalhadora. A educação sexual é infelizmente carente para meninos e meninas. As pessoas estão trabalhando mais horas, sob pressões maiores de metas e supervisão gerencial. Vivemos em um mundo onde “todas as nossas necessidades humanas foram transformadas em mercadorias” que podem aparentemente ser satisfeitas tão facilmente quanto comprar um McDonald’s.45Pritchard, 2010. Os fins de semana são momentos em que o álcool e outras drogas prometem aliviar as pressões insuportáveis da vida profissional.46Eu também argumentaria que o crescimento da obesidade é outra consequência da mercantilização da necessidade humana de comer e beber.

Mas nossas necessidades sexuais não podem ser satisfeitas assim. O mais íntimo dos relacionamentos requer um reconhecimento do outro como uma pessoa, como um igual, como alguém que também tem necessidades. A sexualidade humana requer um ambiente humano e um relacionamento humano, tempo e paciência, bem como uma centelha humana. As próprias vidas que levamos tornam difíceis os relacionamentos sexuais satisfatórios. Não é de se admirar que a indústria do sexo preencha a lacuna com vídeos pornográficos, brinquedos sexuais, clubes de dança erótica, agências de acompanhantes e prostituição de rua à moda antiga.

Gravura publicada na National Police Gazette, 1877

E ao fazer isso, a indústria reforça a divisão de gênero das mulheres como objetos sexuais e dos homens como compradores do produto. Essa divisão aprisiona as mulheres na negação de suas próprias necessidades sexuais e os homens na crença de que as mulheres são corpos para ser cobiçados ou comprados. Uma das belezas da contracepção era que ela abria a possibilidade de homens e mulheres desenvolverem relacionamentos sexuais sem ter que “parar em Malton”.47O local para parar variou de uma parte do país para outra. Em qualquer caso, a contracepção significava que as mulheres não tinham mais medo de que o sexo com penetração levasse à concepção. A dança erótica e outras formas de exibição sexual substituem “procurar” por relações sexuais reais. Talvez seja apropriado que Paris Hilton, que está entediada com relações sexuais reais, tenha se tornado um ícone recentemente. Compare isso com Jane Birkin na canção de Serge Gainsbourg “Je t’aime…moi non plus” de 1967, onde Birkin parecia estar tendo um orgasmo.48Levy, 2005, pág. 30.

Uma abordagem marxista ao trabalho sexual

Quais são as implicações de tudo isso para os marxistas e nossas atitudes em relação à família e ao trabalho sexual? Primeiro, precisamos reafirmar que um aspecto da libertação para homens e mulheres é desenvolver nosso potencial total como indivíduos, independentemente do gênero. Segundo, temos uma visão de relacionamentos sexuais humanos que são livremente estabelecidos e baseados em atração mútua, consentimento e satisfação. Se tais relacionamentos são de curta ou longa duração, com o mesmo sexo ou o sexo oposto, entre casais da mesma idade ou com grandes diferenças de idade, será uma questão para os próprios casais decidirem. E em um mundo que encoraja o desenvolvimento de todos os aspectos da personalidade humana, a dependência total de um relacionamento de “amor” dará lugar a relacionamentos mais variados baseados na solidariedade.49Kollontai, 2022 [1923], págs. 107-111.

Tal visão só será realizada por meio de uma transformação completa da sociedade. Só será alcançada quando organizarmos a produção para atender às necessidades humanas em vez de maximizar os lucros. O papel da publicidade para nos fazer comprar coisas desaparecerá quando pudermos discutir e decidir quais são nossas necessidades. Em particular, no entanto, significa a socialização de todos os aspectos da família, a fim de abrir a porta para diferentes tipos de relacionamentos amorosos e de apoio, tanto entre adultos quanto entre adultos e crianças. Além disso, também exigirá o desaparecimento da indústria do sexo para que as mulheres não vendam mais seus corpos e os homens não procurem mais pornografia, dança de colo ou compra de serviços sexuais.

Mas onde isso deixa a questão de organizar os profissionais do sexo hoje? Temos que começar pela oposição a qualquer tipo de condenação das mulheres e homens que se envolvem na indústria do sexo. Precisamos nos opor inequivocamente a todas as formas de criminalização dos profissionais do sexo e de seus clientes. Isso inclui fazer campanha pela livre circulação de pessoas ao redor do mundo e seus direitos legais de se tornarem parte da sociedade de sua escolha.50Pritchard, 2010.

Também precisamos ser inequívocos em nosso apoio ao direito das trabalhadoras sexuais de se sindicalizarem e fazerem campanha por demandas que melhorem suas condições. Em particular, devemos reconhecer como levantes revolucionários podem permitir que algumas das trabalhadoras mais vulneráveis da sociedade transformem suas vidas. O papel desempenhado por algumas prostitutas na defesa da Comuna de Paris de 1871 é um exemplo disso.51Cliff, 1984, pág. 42. No entanto, isso não era verdade para a maioria das prostitutas.

Mas isso significa que os marxistas devem ver a organização das trabalhadoras sexuais como uma prioridade? Um grau de cautela é necessário aqui. Sanders, O’Neill e Pritcher estimam que “dos sete países onde a sindicalização [de trabalhadoras sexuais] existe, a filiação pode ser estimada em aproximadamente 5 mil pessoas”52Sanders, O’Neill e Pitcher, 2009, pág. 108. Seus números são de 2007 e retirados de Gall. Esses números são pequenos. Dale e Rose apontam algumas das dificuldades envolvidas neste campo:

É evidente que a organização coletiva das trabalhadoras sexuais, no Ocidente como em outros lugares, enfrenta barreiras estruturais e sociais. Muito trabalho sexual é individualizado ou acontece em pequenos locais de trabalho… Muitos são contratados independentes e/ou têm aspirações de pequenos negócios e, como tal, estão envolvidos em rivalidade econômica direta.53Dale e Rose, 2010a. Veja também Sanders, O’Neill e Pitcher, 2009, capítulo 6.

Em seguida eles observam, corretamente, que os mesmos argumentos podem ser usados a respeito de “encanadores ou jornalistas freelance ou empregados domésticos”.54Dale e Rose, 2010a. Mas vale a pena considerar o último exemplo mais de perto. Havia um milhão de empregadas domésticas, principalmente mulheres, na Grã-Bretanha no final do século XIX. Mas foram as greves das “garotas dos fósforos” [o bem-sucedido movimento grevista das trabalhadoras da fábrica de fósforos Bryant & May, em 1888], junto com as de estivadores e outros no Leste de Londres, que construíram os primeiros grandes sindicatos gerais na Grã-Bretanha e, assim, transformaram as perspectivas para mulheres e homens da classe trabalhadora.

Kollontai no Congresso do Partido Social-Democrata, 1910

Sempre argumentamos que o partido revolucionário tem que lutar para que a classe trabalhadora seja a tribuna dos oprimidos. Mas isso não significa começar pelos mais oprimidos. Nossa abordagem para a organização de trabalhadoras sexuais deve seguir essas linhas. Como um guia aproximado, isso significa que os revolucionários individuais se organizam onde se encontram. Mas em seções locais e delegações do partido, o foco deve estar em grandes concentrações de trabalhadores, estudantes e outros envolvidos na luta. Precisamos evitar os dois moralismos: o de rejeitar as trabalhadoras sexuais como inimigas e o de elevá-las a ser o foco do combate à opressão.55Os marxistas desenvolveram argumentos semelhantes nas décadas de 1960 e 1970 contra o foco na organização das donas de casa, em oposição aos argumentos a favor de “salários para o trabalho doméstico”.

Mas se apoiamos positivamente o direito das trabalhadoras sexuais de se organizarem, isso significa que simplesmente igualamos o trabalho sexual a outros trabalhos? Aqui vale a pena olhar como Kollontai descreve a prostituição:

“A prostituição é acima de tudo um fenômeno social; está intimamente ligada à posição de necessidade da mulher e sua dependência econômica do homem no casamento e na família. As raízes da prostituição estão na economia. A mulher é, por um lado, colocada em uma posição economicamente vulnerável e, por outro lado, foi condicionada por séculos de educação a esperar favores materiais de um homem em troca de favores sexuais, sejam eles dados dentro ou fora do vínculo matrimonial.”56Kollontai, 2018 [1921].

Kollontai está fundamentalmente certa ao apontar a vulnerabilidade econômica como a principal razão pela qual algumas mulheres veem a venda de sexo ou serviços sexuais como uma opção: “Para homens e mulheres, o fator motivador para a entrada na indústria do sexo é a necessidade econômica e, para muitos, essa é uma escolha consciente, pois lhes oferece mais dinheiro do que poderiam ganhar em um emprego convencional”.57Sanders, O’Neill e Pitcher, 2009, pág. 40. Veja também Carré e Agostini, 2010, págs. 24-50, e Mathieu, 2007, págs. 23 e 105-117.

O que mudou, no entanto, é a maneira como a mercantilização do sexo criou um mercado para a indústria do sexo. Que efeito isso tem sobre os trabalhadores sexuais? Dale e Rose afirmam que o estigma associado ao trabalho sexual cria “maiores dificuldades psicológicas para os trabalhadores do sexo do que o trabalho em si”.58Dale e Rose, 2010a. Mas há evidências de que esse estigma está diminuindo. Uma série de práticas associadas à indústria do sexo estão se tornando mais aceitáveis: a sexualização dos corpos das meninas, meninas fazendo sexo oral para meninos em tenra idade, o uso de vídeos pornográficos e assim por diante.59Dale e Rose, 2010a. Para citar Sanders, O’Neil e Pitcher:

“Bernstein (2001) argumentou que o uso prolífico e integral do sexo, em particular da forma do corpo feminino, na publicidade e outros mecanismos de produção cultural produziu uma maior aceitabilidade do erótico, uma normalização do desejo pelo erótico e uma aceitação crescente de homens (e cada vez mais mulheres) para perseguir esses desejos.”60Sanders, O’Neil e Pitcher, 2009, pág. 30.

Então, mais e mais pessoas estão sendo atraídas para a indústria do sexo, enquanto as reações a isso variam de acolher positivamente esse desenvolvimento, passando pela ambivalência até a hostilidade total. Orr documentou o crescimento recente da cultura obscena e da oposição à sua intrusão na sociedade, particularmente em campi universitários.61Orr, 2010.

Uma compreensão marxista da sexualidade

Os marxistas precisam manter uma visão clara sobre uma série de coisas. Primeiro e mais importante, há uma diferença entre os relacionamentos sexuais consensuais aos quais as pessoas aspiram (sejam de curto ou longo prazo) e qualquer coisa que envolva a compra e venda de atos sexuais.

A diferença entre esses dois é real, e é por isso que aqueles envolvidos na venda de sexo falam sobre se “dividir” para fazer seu trabalho. No caso de um relacionamento pessoal, os indivíduos esperam “ser eles mesmos” sem ter que colocar uma máscara ou desempenhar um papel. O trabalho sexual necessita do oposto: desempenhar um papel para separar seu trabalho sexual de seus relacionamentos pessoais. É por isso que uma sociedade futura na qual todos os seres humanos poderão experimentar relacionamentos gratificantes seria uma na qual o trabalho sexual desapareceria.

Segundo, há uma diferença entre a redução erótica e pornográfica dos corpos das mulheres a objetos sexuais.62Estou ciente de que esta é uma declaração um tanto áspera, mas espero que seja suficiente apenas declará-la aqui. Na verdade, eu argumentaria que a última leva a uma deserotização, o que talvez explique em parte por que tantas mulheres jovens podem se esforçar para se apresentar como sexualmente atraentes sem ter um conceito real, muito menos experiência, de relacionamentos sexuais estimulantes e satisfatórios.63Veja Levy, 2005, capítulo 1. A reestruturação cirúrgica dos órgãos sexuais das mulheres ilustra esse triunfo da “apresentação” sobre o desejo e a satisfação sexual.

Lenin discursa em 5 de maio de 1920, durante a Guerra Civil

Terceiro, há a questão da solidariedade da classe trabalhadora. Os trabalhadores, por meio de sua posição única no processo de produção, têm o poder de derrubar o capitalismo e criar uma sociedade diferente. Mas há aspectos concretos cruciais para atualizar esse poder econômico potencial. A unidade deve ser forjada diante de um inimigo comum. As divisões dentro da classe trabalhadora devem ser superadas por meio de um processo democrático de debate e discussão. A solidariedade é essencial para uma classe trabalhadora com a intenção de transformar a sociedade. Os trabalhadores do sexo masculino devem aceitar as mulheres como suas iguais. E todos os trabalhadores devem aceitar que a sexualidade de uma pessoa pode ser variada, mas é sempre humana, e que as crenças religiosas são estritamente uma questão privada. Como Kollontai argumenta, a solidariedade é ouvir e responder às necessidades do outro.64Kollontai, 2022 [1923], pág. 111.

Como esse processo pode ocorrer se os homens pensam que os corpos das mulheres são objetos sexuais a ser cobiçados e ocasionalmente comprados para uma rápida felação ou outro ato sexual? Como as mulheres podem se sentir confiantes sobre a solidariedade se elas se sentem obrigadas a se apresentar como objetos sexuais para os homens? Ou que seu propósito é estimular sexualmente os homens sem experimentar a satisfação de suas próprias necessidades?

A indústria do sexo atravessa e enfraquece essa necessidade de solidariedade da classe trabalhadora. Portanto, os marxistas precisam desafiar suas alegações de ser erótica, de fornecer um serviço útil ou de ser de alguma forma empoderadora para as mulheres. Sem ser moralistas, precisamos explicar que a indústria do sexo é parte da deformação e da destruição do desejo sexual humano, tanto masculino quanto feminino. Ela objetifica aqueles que trabalham nela e aqueles que a usam.

À medida que os movimentos de massa contestam e desafiam as estruturas sociais, eles inevitavelmente levantam questões sobre relações pessoais e sexualidade. Os marxistas dificilmente deveriam se surpreender que milhões de pessoas envolvidas na luta e transformação de sociedades opressivas devam voltar seus pensamentos para quebrar os laços de relacionamentos pessoais insatisfatórios e reformulá-los. Esse processo foi visível recentemente na Praça Tahrir, no Cairo [a “primavera árabe” de 2010], quando vimos cristãos ao lado de muçulmanos, homens ao lado de mulheres, jovens ao lado de velhos, todos lutando juntos por mudanças sociais. É uma parte intrínseca do processo de libertação revolucionária começar a respirar, ousar, sentir e experimentar de uma maneira diferente. Desde que coloquemos a questão da solidariedade da classe trabalhadora no centro do que fazemos, podemos cometer erros, mas não iremos muito longe neles.


Referências

Banyard, Kat, 2010, “The Equality Illusion: The Truth about Men and Women Today (Faber).

Carré, Jean-Michel, e Agostini, Patricia, 2010, “Travailleu(r)ses du sexe: et fières de l’etre” (Editions du Seuil).

Cliff, Tony, 1984, “Class struggle and Women’s Liberation” (Bookmarks Publications), disponível no Arquivo Marxista na internet .

Dale, Gareth e Xanthe Rose, 2010a, “Uma Resposta ao Debate sobre o Trabalho Sexual”, International Socialism número 127 (verão), e aqui no Mundo Invisível.

Dale, Gareth e Xanthe Rose, 2011b, “Trabalho sexual: uma réplica”, International Socialism número 129 (inverno) e aqui no Mundo Invisível.

Dee, Hannah, 2010, “The Red in the Rainbow: Sexuality, Socialism and LGBT Liberation” (Bookmarks Publications).

Edwards, Jess, 2010, “Sexismo e trabalho sexual: uma resposta a Gareth e Xanthe”, International Socialism número 128 (outono), publicado em 15 de outubro de 2010, e aqui no Mundo Invisível.

Engels, Friedrich, 2019 [1884], “A origem da família, da propriedade privada e do Estado” (Boitempo editorial), ou no Arquivo Marxista na Internet (1964) (última atualização: 11/03/2024) e também aqui.

Engels, Friedrich, 2004 [1876], “O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem, Arquivo Marxista na Internet. Fonte: edição soviética de 1952, inclusão em 2004.

Harman, Chris, 1988, “The Fire Last Time: 1968 and After” (Bookmarks Publications).

Harman, Chris, 1994, “Engels and the Origins of Human Society”, International Socialism número 65 (winter), disponível no Arquivo Marxista na Internet em inglês.

Kollontai, Alexandra, 1977, “Selected Writings” (Alison e Busby). Em português, os textos referidos neste artigo podem ser encontrados em: Kollontai, Alexandra, 2022 [1923], “Abram caminho ao Eros alado: carta à juventude operária”, em “Kollontai 150 – Textos escolhidos de Alexandra Kollontai”, págs. 85-111 (Associação Internacional de Editoras de Esquerda), acessível aqui,e em Kollontai, Alexandra, 2018 [1921], “A prostituição e as maneiras de combatê-la”, em Cem Flores e no Arquivo Marxista na Internet.

Leacock, Eleanor Burke, 2019, “Mitos da Dominação Masculina: Uma Coletânea de Artigos sobre as Mulheres numa Perspectiva Transcultural (Instituto Lukács, copyright Monthly Review Foundation), disponível aqui.

Levy, Ariel, 2005, “Female Chauvinist Pigs: Women and the Rise of Raunch Culture” (Pocket Books).

Marx, Karl, 1975, “Early Writings” (Penguin). Este livro reúne escritos de Marx de 1843 e 1844. A maioria desses escritos está disponível no Arquivo Marxista na Internet em português ou outras línguas.

Mathieu, Lilian, 2007, “La Condition Prostituée” (Textuel).

McGregor, Sheila, 1989, “Rape, Pornography and Capitalism”, International Socialism número 45 (inverno), disponível no Arquivo Marxista na Internet em inglês.

Orr, Judith, 2010, “Marxism and Feminism Today”, International Socialism número 127 (verão),

Pritchard, Jane, 2010, “O debate sobre o trabalho sexual”, International Socialism número 125 (inverno), também acessível aqui no Mundo Invisível.

Sahlins, Marshall, 2003, “Stone Age Economics (Routledge).

Sanders, Teela, O’Neill, Maggie e Pitcher, Jane, 2009, “Prostitution: Sex Work, Policy and Politics” (Sage Publications).

Walter, Natasha, 2010, “Living Dolls: The Return of Sexism (Virago).


Notas

  • 1
    Decidi usar o termo “trabalho sexual” pelos mesmos motivos que Jane Pritchard – para evitar qualquer indício de condenação moral, mas sem implicar que “trabalho sexual” seja “um trabalho como qualquer outro” (Pritchard, 2010).
  • 2
    Pritchard, 2010.
  • 3
    Dale e Rose, 2010a.
  • 4
    Edwards, 2010.
  • 5
    Dale e Rose, 2011b
  • 6
    Pritchard, 2010.
  • 7
    Dale e Rose, 2010a.
  • 8
    Dale e Rose, 2010a.
  • 9
    Pritchard, 2010.
  • 10
    Dale e Rose, 2010. Esta formulação é cercada por tantas qualificações que revela as próprias incertezas dos autores. Algumas perguntas são necessárias. Se a sexualidade não faz parte da nossa natureza humana, como ela surge e por quê? Como a raça humana evoluiu e continuou a se reproduzir se isso não faz parte da nossa natureza humana? Ou Dale e Rose estão de fato postulando algum tipo de dualismo, com um “instinto sexual” para garantir a reprodução e uma dimensão adicional que podemos chamar de “sexualidade”?
  • 11
    Talvez um pouco de cuidado seja necessário – todos nós estamos comprometidos em lutar contra a opressão das mulheres e por um mundo sem relacionamentos opressivos, incluindo o trabalho sexual.
  • 12
    Acredito que Pritchard apresentou uma análise clara e correta, então, de muitas maneiras, estarei reafirmando muito do que ela já argumentou. No entanto, Pritchard não poderia ter previsto que o desacordo surgiria em torno da questão da sexualidade e da natureza humana. Daí a necessidade de desenvolver esse argumento ainda mais, bem como abordar a mudança fundamental no lugar do sexo na sociedade capitalista nos últimos 20 anos.
  • 13
    Veja meu artigo, McGregor, 1989.
  • 14
    Para uma análise mais longa disso e referências, veja McGregor, 1989, e também Kollontai, 2022 [1923].
  • 15
    Engels, 2019 [1884].
  • 16
    Uma definição popularizada em Duncan Hallas em reuniões ao longo da década de 1980.
  • 17
    Harman, 1994.
  • 18
    Harman, 1994.
  • 19
    Engels, 2019 [1884].
  • 20
    Para uma revisão completa de Engels e uma atualização de sua análise, veja Harman, 1994. Para os propósitos da discussão aqui, se Engels estava certo em todos os seus argumentos não é pertinente.
  • 21
    A caça era geralmente um assunto coletivo, às vezes envolvendo mulheres.
  • 22
    Veja McGregor, 1989.
  • 23
    Marshall Sahlins apresenta esse argumento em Sahlins, 2003.
  • 24
    Dale e Rose, 2010.
  • 25
    Engels, 2019 [1884].
  • 26
    Dee, 2010.
  • 27
    Kollontai, 2022 [1923].
  • 28
    McGregor, 1989.
  • 29
    McGregor, 1989.
  • 30
    Veja McGregor, 1989.
  • 31
    McGregor, 1989.
  • 32
    Orr, 2010.
  • 33
    A Segunda Guerra Mundial viu uma grande interrupção nos relacionamentos “normais”, pois noivos e maridos foram para a guerra, talvez para nunca mais voltar. Isso deu às mulheres atraídas para o trabalho produtivo uma margem de independência e liberdade em relacionamentos pessoais que elas não teriam encontrado de outra forma. Também causou dificuldades para muitas quando a vida familiar “normal” foi restabelecida após 1945.
  • 34
    Este período de revolta foi amplamente documentado em outros lugares. Veja Harman, 1988 e Orr, 2010.
  • 35
    Prefiro usar o termo Movimento de Libertação das Mulheres em vez de “feminismo de segunda onda” porque é um termo mais preciso para o desenvolvimento do movimento na década de 1960. O último termo me parece estar associado ao enterro da ideia de que uma mudança social fundamental é necessária para se livrar da opressão das mulheres. Em qualquer caso, “feminismo de segunda onda” me lembra anúncios de estilo de cabelo.
  • 36
    Estudantes tiveram que fazer campanha para poderem usar os quartos uns dos outros à noite.
  • 37
    McGregor, 1989.
  • 38
    A ligação entre a solidariedade da classe trabalhadora e o combate ao sexismo foi ilustrada durante a Grande Greve dos Mineiros de 1984-1985. Um canto comum dos mineiros na primeira grande manifestação em Mansfield era “Mostrem seus peitos para os mineiros” (dirigido às policiais mulheres). Na época, comentei com as pessoas ao meu redor que, com atitudes como essa, os mineiros nunca venceriam. No entanto, no final da greve, esses mesmos mineiros estavam transformados. As esposas dos mineiros se tornaram centrais para organizar a solidariedade. A Manifestação de Libertação Gay em 1985 foi liderada por uma faixa dos mineiros.
  • 39
    Orr, 2010.
  • 40
    Esses pontos foram amplamente expressos por Pritchard, 2010.
  • 41
    Uma proporção da indústria do sexo é dedicada a atender clientes mulheres por meio de agências de acompanhantes e prostitutas de rua. Há também travestis envolvidas no trabalho sexual. A pornografia é muito usada por mulheres e crianças. Mas embora muitos dos usuários de pornografia possam ser meninas e mulheres, seu conteúdo é sobre o uso de mulheres como objetos sexuais para satisfazer homens.
  • 42
    Veja o site da Cross Cultural Connections, mas o documento com estatísticas já não está disponível; de qualquer modo, observe que todas essas estatísticas são difíceis de verificar, pois grande parte da indústria do sexo é ilegal.
  • 43
    Orr, 2010.
  • 44
    A ausência de luta e solidariedade da classe trabalhadora pode, é claro, mudar muito rapidamente.
  • 45
    Pritchard, 2010.
  • 46
    Eu também argumentaria que o crescimento da obesidade é outra consequência da mercantilização da necessidade humana de comer e beber.
  • 47
    O local para parar variou de uma parte do país para outra. Em qualquer caso, a contracepção significava que as mulheres não tinham mais medo de que o sexo com penetração levasse à concepção.
  • 48
    Levy, 2005, pág. 30.
  • 49
    Kollontai, 2022 [1923], págs. 107-111.
  • 50
    Pritchard, 2010.
  • 51
    Cliff, 1984, pág. 42. No entanto, isso não era verdade para a maioria das prostitutas.
  • 52
    Sanders, O’Neill e Pitcher, 2009, pág. 108. Seus números são de 2007 e retirados de Gall.
  • 53
    Dale e Rose, 2010a. Veja também Sanders, O’Neill e Pitcher, 2009, capítulo 6.
  • 54
    Dale e Rose, 2010a.
  • 55
    Os marxistas desenvolveram argumentos semelhantes nas décadas de 1960 e 1970 contra o foco na organização das donas de casa, em oposição aos argumentos a favor de “salários para o trabalho doméstico”.
  • 56
    Kollontai, 2018 [1921].
  • 57
    Sanders, O’Neill e Pitcher, 2009, pág. 40. Veja também Carré e Agostini, 2010, págs. 24-50, e Mathieu, 2007, págs. 23 e 105-117.
  • 58
    Dale e Rose, 2010a.
  • 59
    Dale e Rose, 2010a.
  • 60
    Sanders, O’Neil e Pitcher, 2009, pág. 30.
  • 61
    Orr, 2010.
  • 62
    Estou ciente de que esta é uma declaração um tanto áspera, mas espero que seja suficiente apenas declará-la aqui.
  • 63
    Veja Levy, 2005, capítulo 1.
  • 64
    Kollontai, 2022 [1923], pág. 111.

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