Putafobia e Violência

Alegando proteger crianças, parte da esquerda ataca trabalhadoras sexuais

Em artigo especial para a Ponte Jornalismo, Monique Prada e Amara Moira dizem que o debate sobre trabalho sexual segue refém do sensacionalismo e do pânico moral, igualando gente considerada progressista à escória do reacionarismo.

Assistimos nos últimos dias a um episódio lamentável em que, a partir da incitação ao pânico moral perpetrada pelo engenheiro Eduardo Moreira em seu programa matinal no Instituto Conhecimento Liberta (ICL), vimos boa parte da esquerda “subir na goiabeira” — expressão que se refere à ex-ministra bolsonarista Damares Alves, trazida por um internauta e bem apropriada para resumir o fenômeno.

Em um protesto contra a veiculação de anúncios da plataforma de acompanhantes Fatal Model em programas de classificação livre (transmissão de jogos de futebol na TV), Eduardo levou, através de seu programa, o site da plataforma à casa de seus espectadores. Começa ironizando valores caros à categoria das trabalhadoras sexuais (“dignidade e respeito”, palavras que são o lema do site), então parte para a área dos anúncios, citando práticas sexuais listadas que ele alega desconhecer e mostrando o anúncio de uma das acompanhantes, que usa a expressão “sonho de consumo”.

O curioso é ver o apresentador do ICL dando publicidade àquilo que ele diz que deve ser escondido, e em horário de fácil acesso para qualquer pessoa — inclusive para aquelas a quem ele diz querer proteger (um programa matinal no seu canal do YouTube, não se esqueçam). Feliz ou infelizmente, ele é obrigado a borrar as imagens para poder exibi-las, por conta das restrições do próprio YouTube, o que nos lembra que a Internet não é um terreno tão livre assim e limites podem e devem ser impostos, seja pelas próprias plataformas ou, e principalmente, pelos responsáveis por crianças.

De qualquer forma, se você até ali nunca tinha ouvido falar da plataforma Fatal Model, agora ouviu: durante alguns dias ela foi largamente divulgada, e gratuitamente, por esse canal — assim como o discurso de ódio direcionado, no fim das contas, às trabalhadoras sexuais, anunciantes ou não da mesma. Acham que não? Então observem a argumentação que ele trouxe:

“Por que as crianças crescem e viram abusadores, objetificam as mulheres, um dos países com mais feminicídio do mundo? Eu volto a dizer, não é uma questão de julgar moralmente a história, é uma questão prática. Quando você coloca uma mulher pelada num site pra crianças verem e coloca ‘sonho de consumo’, significa que você consome uma mulher. Ela é um objeto que você compra, porque aqui tem o preço, quanto custa pra comprar, R$ 1.200 a hora, e você consome.”

Armadilhas do pensamento

As frases e o sensacionalismo sobre o tema poderiam perfeitamente caber na boca de de uma feminista reacionária, de um pastor fundamentalista ou até de um extremista de direita. O fato é revelador de que o debate em torno do trabalho sexual e, mais importante ainda, em torno dos direitos de trabalhadoras/es sexuais, segue refém do sensacionalismo e do pânico moral, independentemente de quem o aborde.

Haver concordância de opinião entre gente considerada progressista e a escória do reacionarismo já deveria fazer com que alarmes soassem — mas no caso desse debate, parece que nem isso é suficiente para revelar as armadilhas de tal pensamento. Numa sociedade que se acostumou a precificar absolutamente tudo, água, comida, terra, moradia, transporte, lazer etc, é de um cinismo absurdo defender que algo tão fundamental como o sexo se mantenha fora dessa lógica.

Obviamente nos interessa a utopia de uma sociedade em que o sexo seja vivido de forma livre, sem o dinheiro como intermediário, mas esperamos que isso aconteça após mudarmos a maneira como encaramos todo tipo de trabalho — e não o sexual apenas. Além disso, a fala de Eduardo Moreira dá ainda a entender que o trabalho sexual se definiria por “liberar o acesso aos nossos corpos”, quando na realidade, além do fato de impormos nossos próprios limites, o que está em jogo são também os saberes que trabalhadoras sexuais possuem sobre corpos variados, desejos inusitados e, obviamente, prazeres (ainda mais se cobram os valores que ele havia anunciado).

Tentam tratar como irrelevantes esses saberes e serviços, mas, em boa medida, são eles que impedem nossa sociedade tão repressora de colapsar. Não é à toa que o trabalho sexual existe.

Eduardo fala em “proteger as crianças” da exposição às propagandas de prostituição, para não formarmos abusadores, objetificadores, feminicidas. Ele responsabiliza, dessa forma, o trabalho sexual pela promoção de tais ensinamentos, não entendendo que a vulnerabilização da mulher ocorre em todos os âmbitos da sociedade. Ocorre, inclusive, quando se faz sensacionalismo a respeito do trabalho sexual, atividade majoritariamente exercida por mulheres.

Futebol e misoginia

Conversando ontem em Porto Alegre com uma anunciante do site citado, inevitavelmente tocamos nesses ataques. Tudo isso a preocupa, porque o que se vê é a hostilidade contra as trabalhadoras sexuais aumentar. Importante dizer que ela também é contra os anúncios em estádios de futebol, mas por motivos diversos aos que Eduardo Moreira elenca. Segundo ela, esses anúncios trazem um péssimo público, um público formado por homens em sua maioria mais complicados e misóginos, talvez porque o futebol seja um dos espaços mais violentos da nossa sociedade, lugar onde as práticas discriminatórias costumam ter livre vazão.

Pensando nisso, nos perguntamos se este ambiente não é, em si, um ambiente propício a formar abusadores, num país com índices de feminicídio alarmantes e se não seria o caso, por exemplo, de pensarmos em restrição a crianças e adolescentes ali. O fato de sequer conseguirem cogitar essa possibilidade é já bastante revelador.

Anúncios de sites de acompanhantes (ou melhor, os deste site em particular, já que é o único, entre os milhares existentes, a cometer a ousadia de invadir o sacrossanto reduto do futebol) estão presentes em estádios desde meados da pandemia, cerca de três anos atrás. Sugerir que eles tenham relação com os altos índices de violência contra a mulher é alimentar espantalhos — e vendar os olhos ao que de fato é crucial nesse tema.

Entendemos o desejo de evitar a veiculação de anúncios de produtos e serviços para adultos em programas de fácil acesso a crianças, mas também entendemos que estes não são os únicos anúncios direcionados a adultos nestes espaços. Bebidas alcoólicas são anunciadas livremente em programas de classificação livre, assim como corretoras de criptomoedas e sites de bets. Se a lei permite tais anúncios, por que não permitiria o da Fatal Model? Até porque bebidas e sites de apostas são muito mais acessíveis a crianças e adolescentes do que programas de R$ 1.200/hora.

No fim das contas, o que se vê é apenas o aumento da hostilidade contra mulheres que exercem essa profissão, que seguem sem contar com o apoio mesmo de setores que se dizem progressistas. Desde que Jean Wyllys abdicou da cadeira no Legislativo, trabalhadoras sexuais nunca mais tiveram figuras públicas que forçassem o debate sobre seus direitos, que lutassem contra o fim do estigma que sofrem.

Aparentemente, o direito das mulheres só importa quando não estamos falando de trabalhadoras sexuais.


Monique Prada é trabalhadora sexual, ativista, feminista e autora do livro “Putafeminista” (Veneta, 2018). É também colunista da Mídia Ninja e da plataforma Fatal Model, e coeditora do Mundo Invisível.

Amara Moira é travesti, feminista, doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp e autora dos livros “E se eu fosse puta” (n-1 edições, 2023) e “Neca: romance em bajubá” (Companhia das Letras, 2024) e colunista do UOL Esporte e da plataforma Fatal Model. Atualmente, atua como Coordenadora no Museu da Diversidade Sexual, em São Paulo.

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