Cultura

E se eu fosse puta? A escrita como provocação

Por Henrique Marques Samyn

A elevada qualidade do livro de Amara Moira transparece já no texto que abre E se eu fosse puta: ali se faz presente toda a pluralidade temática que perpassa os escritos reunidos na obra. A ansiedade da estreia nas ruas; a tensa relação com os clientes – oscilando entre o prazer e o perigo, para usar a expressão consagrada pelo título do crucial volume organizado por Carole Vance; a experiência de construção (por vezes catártica, por vezes dolorosa) de novos modos de exercício da sexualidade; enfim, o relato de um tornar-se que traz à tona vivências e prazeres que os guardiões dos bons costumes preferem relegar às sombras, onde podem conhecê-los sem colocar em risco uma reputação alicerçada na hipocrisia.

Esse já é, de fato, um notável mérito do livro: ao enfocar explicitamente o tornar-se, Amara constrói caminhos que lhe permitem dissecar, com um raro talento descritivo, os múltiplos dispositivos de poder que facultam a exclusão de corpos e identidades na sociedade em que vivemos.  O que é tornar-se puta, senão percorrer o caminho rumo à categoria política sobre a qual a ordem patriarcal destila com mais fervor sua misoginia?

Não falei por acaso em um “raro talento descritivo”: como certamente muitos dos textos que abordarem o livro enfocarão questões relacionadas à sexualidade e à prostituição – sem dúvida centrais na obra –, gostaria de enfatizar as suas qualidades literárias. Porque Amara Moira, na posição de autora desse livro, é, em primeiro lugar, uma escritora que demonstra um notável domínio da linguagem. Doutoranda na Unicamp, atualmente elaborando tese sobre James Joyce, Amara corria pelo menos dois riscos: ou incorrer em um jargão academicista, talvez recaindo no beletrismo, ou perder a mão ao tentar fugir de qualquer tipo de cultismo, na busca de uma linguagem supostamente mais espontânea. Ao fim, Amara logrou evitar ambas as armadilhas. Optando por registros predominantemente cronísticos e diarísticos, avançando ocasionalmente para o ensaio e para a poesia, Amara se revela uma autora versátil, capaz de produzir textos que oscilam entre o drama mais pungente e o humor mais elaborado.

Essa riqueza de registros, aliada a um cuidadoso manejo das expectativas de quem lê, faz de E se eu fosse puta um livro que incita e instiga quem ousa enfrentar suas páginas. Amara Moira não escreve para entreter: escreve para provocar, perturbando e desestabilizando quem quer que se depare com seus textos. A esse respeito, seria tentador tratar o livro como uma espécie de resposta às opressões sofridas, um “tapa na cara” da sociedade transfóbica e putafóbica; penso, contudo, que fazê-lo é recair num reducionismo que deixa de considerar o quanto há no livro de artifício, no melhor dos sentidos: o árduo trabalho de quem transforma experiências em linguagem, convertendo o desabafo em expressão literária. Como afirma no desfecho de um dos textos do livro, Amara forja, de forma deliberada e consciente, uma “língua travesti puta escritora” que merece ser reconhecida em toda a sua autenticidade.